segunda-feira, 29 de julho de 2013

Sarau Antene-se, a flor que nasce no asfalto



Número de pirofagia no sarau Antene-se, que acontece
no Capão Redondo todo último domingo do mês.
O bar do Jorge, também conhecido como Saldanha, é um bar vermelho. De uma das portas de entrada dá para ver o rosto de Bob Marley na parede, perto do balcão, uma chaleira e uma guitarra estão penduradas. Em uma parede à direita vemos peixes coloridos e uma estante cheia de livros. Nesse balaio de sensações é onde acontece o Sarau Antene-se.

O encontro de artes nasceu em março de 2011, de maneira despretensiosa, como uma cerveja num domingo à tarde.
Influenciado pelos saraus da região, um grupo de amigas que já frequentava o bar pensou em criar alguma atividade para aproveitar o espaço. Desde o início os objetivos eram claros: “Pensamos em fazer o sarau para melhoria do espaço e consequentemente da comunidade em que a gente vive”, explica Camila Costa, 22 anos, uma das organizadoras.

Cheias de entusiasmo, apresentaram o projeto ao Jorge, dono do bar, que de pronto aceitou a ideia, mas nem tudo é poesia, um ocorrido anos antes podia atrasar o andar da carruagem. “A galera ficava receosa de colar, porque em 2006, num bar próximo, ouve uma chacina. Aqui ficou conhecido como o pico dos caras barra pesada”, conta a estudante.
Mesmo com esse e outros contratempos, o sarau não esmoreceu, tomou corpo e despertou a curiosidade das pessoas, principalmente pela diversidade de intervenções artísticas; stand up, números de mágica, pirofagia, capoeira, e até crianças iniciando os batuques no maracatu.

O nome é fenício, mas Ahiran Romanato, 24 anos, é de Embu das Artes.
Desde muito novo ouvia “rap gringo”, e a influência dos rappers americanos acabou por suscitar no garoto, então com 14 anos, o interesse pelo beatbox, a arte de produzir sons ritmados com a boca.


Graças ao convite de uma amiga, colocou os pés pela primeira vez em um sarau e pode mostrar o seu trabalho. “A minha primeira impressão foi muito boa, a galera é receptiva e o microfone é aberto para qualquer um que queira expor a sua arte”, conta.
Mas nem só de adultos vive o sarau, crianças, pessoas de mais idade e cachorros tristes também passam por lá... Uma garotinha cor de jambo enrolada com seu pequeno cachecol lilás, livra-se da timidez segura o microfone e canta baixinho: “Sereia vai nadar, vai nadar, nada que vai ser bom...”.

Para mais informações acesse o perfil do Sarau Antene-se no Facebook.

terça-feira, 23 de julho de 2013

Pé de carcaça


(Foto: QP)
Antes de me deitar, deixo a janela aberta. Minha cabeceira fica encostada na parede da janela, adormeço observando os móveis iluminados pela lua. Pela manhã, o dia invade o quarto e me põe de pé.
Debaixo de um azul celestial, os meninos da favela gritam e chutam aos quatro ventos no campinho de barro, crianças chorosas e cachorros nervosos disputam ouvidos, enquanto a vizinha varre quase sem poder com sua vassoura velha.

Descalça vou ao banheiro, lavo as mãos e olho para o espelho. Meus cabelos estão em arruaça e de minha cara amassada, ainda pingam uns restos de sonho que não vivi.
Ponho a água no fogo. A cada barulho meu, os cachorros latem e choram. Abro a porta e eles se alegram. Eu também me alegro. Cachorro é amor de criança, amor de graça. Adoço o café e me junto a eles no quintal.

O pé de flores vermelhas, que não sei o nome, continua crescendo, nesse eterno flores caem, flores nascem. Atrás de meu banco de madeira, as formigas fazem bom proveito do pé de jabuticaba. É triste. Depois de comerem a poupa, deixam a casca seca cheia de pequenos buracos. Tenho um pé de carcaça.

A filha da minha vizinha está crescendo. Já consegue jogar seus pertences no meu quintal. Minha cachorra agradece, abanando o rabo com a boneca careca entre os dentes. Sem secar os olhos, a menina chora, chora, parece que a vida já lhe contou que algumas coisas são assim mesmo, vão e não voltam...
Na cozinha, encho a caneca novamente. De volta ao quintal, a cachorra cansou da boneca, a menina desistiu de sofrer e as formigas foram embora.
Tanta coisa acontece enquanto dura um café...




Angelina Miranda é jornalista e escritora sem livros.
Ri alto, é fã de jabuticaba, cachorro, botecos e maus modos.
Dá uns pitacos pelo Feici e faz uns versos no Poesias Angelinas

quinta-feira, 18 de julho de 2013

O dia em que conheci o guardião da CPTM


(Foto: Ricardo Guimarães - Diário da CPTM)
Era por volta de 23h. Estava aproveitando os últimos goles de cerveja à espera do trem, que, como de costume, tardou a chegar. De repente, surgiu um homenzinho de baixa estatura, levemente pançudo com cara de poucos amigos.
– A senhora não pode beber dentro da estação.

– Ah, o senhor me desculpe, eu não sabia. Estou terminando e já jogo a lata fora.

Ele cruzou os braços diante de mim e ergueu o queixo, como que chamando para um duelo. Adiante, vi seus colegas na ponta da plataforma. Olhavam o rio entediados, meio sonolentos, aguardando o fim do expediente, mas não o homenzinho, esse queria mostrar serviço.
– A senhora vai jogar a lata fora agora! – Disse, aumentando o tom.

O homenzinho cresceu dentro de sua farda azul e pintou as bochechas de vermelho.

– Não vou jogar fora, comprei e vou beber. – respondi.
Ele se aproximou e tentou levar a lata na mão grande, dei um olé no ar e ele apertou o vazio.

– Olha, eu não deveria ter entrado com a lata, mas já que entrei, me diga, a quem eu prejudico terminando de tomar esses dois goles de cerveja quente?

– Não pode! Joga a lata no lixo agora! – Disse indignado.
Mesmo falando alto e quase mostrando os dentes, seus colegas não nos deram nenhuma atenção, em meio aos bocejos, continuaram com os olhos do rio.

– No regulamento da CPTM está escrito que é proibido consumir bebida alcoólica nas estações!

– O senhor vai me desculpar, mas apenas passo a catraca e entro no vagão, não leio nenhum manual do trem.

– Ou joga a lata fora, ou...
Finalmente o trem chegou, pensei. Larguei o homenzinho e suas ameaças. Sentei-me num dos bancos, e antes de sorver o último gole ergui a lata e fiz um brinde em sua homenagem.

– Adeus guardião da CPTM!


Angelina Miranda é jornalista e escritora sem livros.
Ri alto, é fã de jabuticaba, cachorro, botecos e maus modos.
Dá uns pitacos pelo Feici e faz uns versos no Poesias Angelinas

segunda-feira, 15 de julho de 2013

Com prédios e shoppings, quem precisa de memória


O terreno, localizado na Av. Elis Maas, fica próximo 
ao metrô do bairro. (foto: QP)
Daqui a algum tempo, fotos como essa serão apenas uma lembrança, uma casa a ser visitada apenas no papel ou na tela do computador.
Este terreno da foto, está localizado no bairro de Capão Redondo, possui, pelo menos, quatro casas, que foi o que deu para ver do lado de fora do portão.

O terreno é grande e repleto de árvores e plantas, o que destoa o visual da via, composta por uma linha do metrô, poucas casas, comércios e casinhas que viraram pequenos comércios. As casas do terreno são antigas e ainda conseguem guardar um quê de bucolismo, possuem umas janelinhas, daquelas que as pessoas apoiam os cotovelos só para olhar a vida.

Mas há uns três meses, ou mais, vi que colocaram uma placa no terreno com os seguintes dizeres: “Em breve centro comercial”.

Esse tipo de placa não é exclusividade deste bairro. Com frequência vemos casas e prédios antigos virarem meros esqueletos de concreto e ferros retorcidos, para depois dar lugar a algum empreendimento.
Vale lembrar que casas são o de “menos”. Há pouco tempo vimos o governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, animadíssimo em destruir o Museu do Índio, ao lado do Maracanã, para construção de um estacionamento. Graças aos protestos, o museu ainda está de pé.

Acontece que, afagadas pelo governo, empresas que visam o “progresso e desenvolvimento” têm cometido inúmeros abusos, com a justificativa de nos "presentear" cada vez mais com lojas, restaurantes, hotéis.


Mas, não sei... Estou achando esses presentes de grego. É bonita e necessária a vida que acontece nas praças, bibliotecas, centros culturais, nas casas antigas... Parece bom que a história de nossos bairros, cidades, que a nossa história, seja contada por ela mesma, por ser o que se é, ou seja, existindo.

Andando pelo centro esses dias me pus a pensar, que não me espantaria se visse em algum jornal que demoliram o Theatro Municipal, em São Paulo, para construção de um shopping para cachorros...


Angelina Miranda é jornalista e escritora sem livros.
Ri alto, é fã de jabuticaba, cachorro, botecos e maus modos.
Dá uns pitacos pelo Feici e faz uns versos no Poesias Angelinas

segunda-feira, 8 de julho de 2013

Por que nos incomoda tanto quem fala “pobrema”?


Marcos Bagno é doutor pela USP e
 tem mais de trinta títulos lançados.
(Foto: Rascunho - Gazeta do Povo)
Marcos Bagno no livro “Preconceito Linguístico – O que é, como se faz”, nos traz uma reflexão sobre como enxergamos a nossa língua e como nos relacionamos com ela. Sobretudo, nos dá uma dimensão da importância de uma educação linguística voltada à inclusão social e a valorização da diversidade cultural entranhada em tantos portugueses falados pelo Brasil afora.
Logo de início, na introdução do livro, ele nos adverte:

“Temos de fazer uma grande esforço para não incorrer no erro milenar dos gramáticos tradicionalistas de estudar a língua como uma coisa morta, sem levar em consideração as pessoas vivas que a falam.”
Assim que li isso me lembrei de uma amiga que mora em Parelheiros, bairro do extremo sul de São Paulo, que me disse uma coisa que também vejo onde vivo, no Capão Redondo (extremo sul também), “Onde moro nunca ouvi uma pessoa falar: “os policiais”, só “os polícia””.   

Eu também nunca vi, e acredito que não seja mera coincidência. Grosso modo, é uma adaptação “malandra” da língua de um povo, de determinada região, que, por motivos muitos, não vê os homens da segurança pública com todo esse garbo e elegância, como sendo merecedores do plural: “Vejam lá, colegas e vizinhos, Os Policiais estão chegando”. É mais comum, “Os polícia tão chegano, mano”, quando dá tempo de dizer isso tudo...

Estamos falando de regiões urbanas, mas nas cidades do interior dos estados, o mesmo fenômeno acontece, com número igual ou maior de variações linguísticas.

Vale lembrar que este modo de falar não se restringe apenas às classes mais baixas. Não foram poucas as vezes que vi pessoas com poder aquisitivo e ensino superior dizerem: “Nóis vamo de qualquer jeito”.
Dessa reflexão, pergunto: O que aprendemos primeiro, a falar ou a escrever?
Para o autor, diferente da história do ovo e da galinha, esse dilema é mais fácil de resolver: “Todo esse processo histórico de inversão dos fatos pode criar a ilusão de que primeiro alguém escreveu uma gramática e só depois é que as pessoas passaram a falar a língua”.


Por defender a legitimidade das variações linguísticas, foi criticado, muitas dessas críticas se fundamentavam no argumento: “Se todo mundo fala como quer, então vamos escrever de qualquer jeito. Pra quê gramática?”.
Sobre isso, Bagno aproveita o gancho e explica a importância da divisão clara dos papéis da língua falada e escrita na sociedade e no cotidiano.
“É claro que é preciso ensinar a escrever de acordo com a ortográfica oficial, mas não se pode fazer isso tentando criar uma língua falada “artificial” e reprovando como “erradas” as pronúncias que são resultado da história social e cultural das pessoas que falam a língua em cada canto do Brasil”.
Em suma, só posso chegar à conclusão que falar pobrema não é um problema se você compreende o significado. Como diz e reitera o linguista, “É infinitamente mais útil e relevante aprender a usar a língua e não aprender sobre a língua”.
Se quiser se aprofundar no assunto, neste link você pode baixar o livro em PDF.

sexta-feira, 5 de julho de 2013

“Há pessoas que vão à igreja, eu vou ao sarau”, diz poeta do sarau Sobrenome Liberdade



O Sarau acontece toda primeira quinta-feira do mês a partir das 20h.
(foto: QP)
Sob os olhos de Alceu Valença, Jim Morrison e Janis Joplin, o sarau Sobrenome Liberdade abre os braços no Relicário Rock Bar, no Grajaú, extremo sul da cidade de São Paulo.

O sarau foi criado em setembro de 2012 e começou num lugar bem menor que um bar, uma folha de papel. “O Sobrenome Liberdade nasceu primeiramente como um fanzine distribuído em eventos culturais, depois se tornou em um sarau. Vimos que a palavra não dá conta de registrar tudo no papel”, conta Ni Brisant, baiano, poeta e idealizador do movimento.
Em sua 11º edição, o sarau reúne pessoas de todos os cantos da cidade, com o mesmo objetivo, ouvir, recitar e talvez até mais, ser poesia. Para isso não precisa estar dentro do bar, dois janelões estratégicos permitem que as pessoas da calçada, sentadas ou de pé, participem do sarau.

Do lado de dentro, o microfone é como um rio de palavras que corre enquanto o sarau acontece. Palavras de amor, de ordem e crítica social. No palco, um garoto de jeans rasgado e black power se movimenta rapidamente e grita: “Fogo no sistema!”, muitos repetem junto. Aqui, provavelmente, ele não será um incendiário solitário.
Por ser “Sobrenome Liberdade”, o sarau traz ao palco não apenas a poesia, no banner pendurado dentro do bar, podemos ler: “Traga sua arte”. Foram o que fizeram três garotos que levaram para dentro do sarau, esquetes que abordam temas do cotidiano. Na encenação, eles falam, andam, choram e gritam no meio do público, até os mais falantes descansam a conversa e prestam atenção.

O estudante de jornalismo, Laio Rocha, 19 anos, depois de ter ouvido falar do sarau por meio de amigos e também pelo Facebook, resolveu conhecer pessoalmente. “Ele é um pouco diferente dos outros. Essa introdução das artes cênicas no sarau, a interação dos poetas com o público é muito interessante. Foi o que mais gostei”, explica.

Para muitos a distância pode ser empecilho para sair de casa numa noite fria de quinta-feira, mas não para Laudecir Silva, 40 anos. Morador do Centro da cidade, sempre que consegue uma folga na escola, não titubeia em se reunir com os amigos para ouvir e declamar poesia.
“Há pessoas que todos os dias, ou uma vez por semana, vão à igreja, eu vou ao sarau. Ele tem essa dimensão religiosa, espiritual. É mais que um evento, um ato cultural, é alimento para a alma”, confessa o professor de filosofia.
Em menos de um ano de existência, o Sarau Sobrenome Liberdade se concretizou como um espaço de expressão do cidadão comum. Onde crianças leem poesias, onde esquecer o poema no palco não é problema, onde as pessoas se abraçam sem receio.

“Não dependemos de nenhuma empresa, nenhum patrocínio, não mercantilizamos a arte. Tudo que temos fomos nós que construímos. Somos nós por nós mesmos”, conclui Ni
Brisant.
Para mais informações, acesse a página do Sobrenome Liberdade no Facebook.

quinta-feira, 4 de julho de 2013

Não ouço quem só aprendeu a falar


Nada que esteja aí para todo mundo me interessa. Dessas coisas todas que possuem as pessoas, nada me interessa. Carros, empregos visados, roupinhas e outros adendos, nada disso me interessa. Eu bato asas e saio voando. Receitas de como agir, de como se portar, a quem se dirigir, como falar. Nada disso me aquece.

Não me interessa nenhum lugar, nenhuma ordem, qualquer organização que queira instituir em mim uma verdade que não autorizei, mas que fui condicionada, sem que me dissessem que havia outra porta. Não aceito que vozes que nunca gritaram, me imponham o que devo acreditar. Estou nessa ciranda para trocar, não acredito em que só aprendeu a falar.

Não é fácil, reluto, mas vou lá; Amarro minha moral numa cadeira, taco fogo nos bons costumes, trancafio no porão meus preconceitos e vou à vida. Beber gente. Gente lapidada como pena de pavão, gente crua que sangra, gente que não é gente, gente que vive para os outros, gente que vive para si, gente que não sabe pra que vive.

Estamos sujeitos à tudo. Na vida estamos aí para todo tipo de violência. Na rua é um tiro que nos encontra, na calçada é um tijolo que cai e abre nossa cabeça. Um enfarte, o coração dorme, e você não mais acorda. E ainda com essas possibilidades esfregadas à luz do dia em nossas caras, enrijecemos os músculos, secamos a saliva, babamos, cuspimos, mostramos os dentes, sem escutar ninguém, nem um pardalzinho.

É como se deus, num dia ruim, tivesse dado um milagre pela metade, um rebanho de surdos que só aprendeu a falar.



Angelina Miranda é jornalista e escritora sem livros.
Ri alto, é fã de jabuticaba, cachorro, botecos e maus modos.
Dá uns pitacos pelo Feici e faz uns versos no Poesias Angelinas.