terça-feira, 13 de maio de 2014

A maldição de ser filha de faxineira



Ser filha de faxineira é foda. É um inferno. Tudo está imundo. Sempre vai estar. Há uma película permanente e embaçada grudada nos olhos. Nada nunca está limpo o bastante. A cozinha, a sala, os quartos, o banheiro então, “criando bicho”. Tudo sujo! 

Dormir? O suficiente. Que varia entre cinco e seis horas de sono. Mais do que isso, somente, se por acaso, tenha enchido uma laje, carregado tijolos ou coisas do tipo. Em Pernambuco era assim, e por todo canto essa cultura tem de ecoar. 

Já acordei do modo tradicional, aos berros, e de modos inusitados. Panelaços, com cães lambendo a cara, e até com água. Gente de bem, honesta e trabalhadora levanta cedo. Custo aprender. 

Óh, quando desgrudo os olhos e são 9h da manhã, de antemão, começo a ter pena de mim. No lugar do bom dia recebo um “boa tarde”. Já é muito tarde, muito tarde, vai perder o dia. O dia tem que render, render. Render pra quê? Por quê? 

Dia desses sofri represálias. Foi um desses dias que extrapolei na cama. Tive que lavar o portão com uma bucha de pia. Sabe como é, limpa melhor. 

As escovas de dente lá em casa nunca foram jogadas fora. Como você, pensava que elas não tinham mais serventia, mas tem. Com uma escova de dente verde e uma barra de sabão fico horas a fio esfregando os rejuntes do banheiro. Metros de rejunte, um a um. Há os que esfregam o todo com uma vassoura, mas isso é serviço de “imunda” e “preguiçosa”, diz ela. 

Pois, então, que venham os sábados azulejados!

Mas eu também fico na cozinha, e é daí que vem uma das maiores tristezas de mamãe: eu não aprecio ariar louças. Nada a entristece mais do que o meu desmazelo, aquelas panelas foscas e sem vida...

Tudo isso, confesso, é porque não honro meu sobrenome. Explico. O nome de mamãe é Marlene e o sobrenome, como ela mesmo enfatiza - e se orgulha - é Trabalho. Eu, como filha, herdei o maldito sobrenome, mas não o coloco em prática. Prefiro, está mais ao meu gosto, ser “imunda” e “preguiçosa”. 

Bom, por ser do trabalho desde muito nova, mamãe não fez faculdade. Fez os filhos, e tinha de sustentá-los. 

Não teve pais bem sucedidos, nem conhecidos, eram maltrapilhos e fizeram o favor de morrer cedo. Partiram de câncer, em época que tratamento era luxo de poucos. O médico apenas mandava o paciente “esperar” em casa, e tenha uma boa passagem. Então, para que eu não caísse nas garras da inanição, foi limpar a sujeira dos outros. 

Era pobre, sem eira nem beira, mas sua maior virtude era ser limpa! É ser limpa! E quando as patroas falavam, então, Ave Maria. Os olhos brilhavam!  

Quanto mais limpa, mais elogio. Tome de presente essas panelas usadas. Mais limpeza. Leve essas roupas, não uso mais. Mais limpeza. Pegue os brinquedos velhos para sua filha. Mais limpeza. Mesmo salário. Mais limpeza.

Com as santas patroas, aprendeu a lição, ou melhor dizendo, a reza. Beija os pés do Trabalho, o seu Deus. Por ele ajoelha e baixa os olhos, o seu Deus, onipotente e absoluto. 

Sequer vai aos parques nos fins de semana, comer uma coisinha fora. É preciso louvar, esfregar, trabalhar! 

Mas eu não louvo o seu Deus. Eu quero matá-lo. E com tristeza ouso dizer mamãe: a vida lhe fez mal, muito mal. 



Angelina Miranda é jornalista e escritora sem livros.
Ri alto, é fã de fotografia, cachorro, botequins e maus modos.
Dá uns pitacos pelo Feici e faz uns versos no Poesias Angelinas.