Ser filha de faxineira é foda. É um inferno. Tudo está
imundo. Sempre vai estar. Há uma película permanente e embaçada grudada nos
olhos. Nada nunca está limpo o bastante. A cozinha, a sala, os quartos, o
banheiro então, “criando bicho”. Tudo sujo!
Dormir? O suficiente. Que varia entre cinco e seis horas
de sono. Mais do que isso, somente, se por acaso, tenha enchido uma laje,
carregado tijolos ou coisas do tipo. Em Pernambuco era assim, e por todo canto
essa cultura tem de ecoar.
Já acordei do modo tradicional, aos berros, e de modos
inusitados. Panelaços, com cães lambendo a cara, e até com água. Gente de bem,
honesta e trabalhadora levanta cedo. Custo aprender.
Óh, quando desgrudo os olhos e são 9h da manhã, de
antemão, começo a ter pena de mim. No lugar do bom dia recebo um “boa tarde”.
Já é muito tarde, muito tarde, vai perder o dia. O dia tem que render, render.
Render pra quê? Por quê?
Dia desses sofri represálias. Foi um desses dias que
extrapolei na cama. Tive que lavar o portão com uma bucha de pia. Sabe como é,
limpa melhor.
As escovas de dente lá em casa nunca foram jogadas fora. Como
você, pensava que elas não tinham mais serventia, mas tem. Com uma escova de
dente verde e uma barra de sabão fico horas a fio esfregando os rejuntes do
banheiro. Metros de rejunte, um a um. Há os que esfregam o todo com uma
vassoura, mas isso é serviço de “imunda” e “preguiçosa”, diz ela.
Pois, então, que venham os sábados azulejados!
Mas eu também fico na cozinha, e é daí que vem uma das
maiores tristezas de mamãe: eu não aprecio ariar louças. Nada a entristece mais
do que o meu desmazelo, aquelas panelas foscas e sem vida...
Tudo isso, confesso, é porque não honro meu sobrenome. Explico.
O nome de mamãe é Marlene e o sobrenome, como ela mesmo enfatiza - e se orgulha
- é Trabalho. Eu, como filha, herdei o maldito sobrenome, mas não o coloco em
prática. Prefiro, está mais ao meu gosto, ser “imunda” e “preguiçosa”.
Bom, por ser do trabalho desde muito nova, mamãe não fez
faculdade. Fez os filhos, e tinha de sustentá-los.
Não teve pais bem sucedidos, nem conhecidos, eram
maltrapilhos e fizeram o favor de morrer cedo. Partiram de câncer, em época que
tratamento era luxo de poucos. O médico apenas mandava o paciente “esperar” em
casa, e tenha uma boa passagem. Então, para que eu não caísse nas garras da
inanição, foi limpar a sujeira dos outros.
Era pobre, sem eira nem beira, mas
sua maior virtude era ser limpa! É ser limpa! E quando as patroas falavam,
então, Ave Maria. Os olhos brilhavam!
Quanto mais limpa, mais elogio. Tome de presente essas
panelas usadas. Mais limpeza. Leve essas roupas, não uso mais. Mais limpeza. Pegue
os brinquedos velhos para sua filha. Mais limpeza. Mesmo salário. Mais limpeza.
Com as santas patroas, aprendeu a lição, ou melhor
dizendo, a reza. Beija os pés do Trabalho, o seu Deus. Por ele ajoelha e baixa
os olhos, o seu Deus, onipotente e absoluto.
Sequer vai aos parques nos fins de semana, comer uma
coisinha fora. É preciso louvar, esfregar, trabalhar!
Mas eu não louvo o seu Deus. Eu quero matá-lo. E com
tristeza ouso dizer mamãe: a vida lhe fez mal, muito mal.
Angelina Miranda é jornalista e escritora sem livros.
Ri alto, é fã de fotografia, cachorro, botequins e maus modos.
Dá uns pitacos pelo Feici e faz uns versos no Poesias Angelinas.