terça-feira, 27 de agosto de 2013

Não jogue guarda-chuva fora

(Créditos da imagem)
Por causa da TPM e da falta de palavra da cobradora que disse ter “esquecido” de me avisar sobre quando chegássemos à igreja Santo Eduardo, desci do ônibus vermelha, cuspindo marimbondos e palavrões. 

Sentei-me no banco do ponto para esperar o próximo ônibus, ao meu lado um velho me observa. O ignoro, ele e seu meio cabo de vassoura que faz as vezes de uma bengala.

Virei o rosto e dei a deixa para outra velha.

- Você gosta de ler?

- Gosto. – Respondi à uma senhora de cabelo caramelo cinzento, óculos igualmente velhos e saia florida.

- Então, minha filha, nesse folheto Deus dará as respostas para todas as suas perguntas. Como conquistar a felicidade, o matrimônio próspero e, o mais importante, como alcançar o reino dos céus.

Era simpática a senhorinha, falava com entusiasmo, até me pareceu bom o Deus do folheto, mas não queria felicidade, casamento, nem reino, queria o ônibus.

- Que bom que nesse folheto tem tudo isso aí que a senhora disse, mas sei que não vou ler, por isso não vou pegar.

- Ooooh, que pena! Mas é sincera, pelo menos não vai pegar pra jogar no lixo. A gente fica tão triste quando isso acontece, evangelizamos porque acreditamos nisso. – Disse, triste e feliz.

Isso com certeza, pensei. Ninguém sai de casa abordando estranhos na rua com folhetos milagrosos, sem ter plena e absoluta fé em suas convicções. Sorri com dentes amarelos, e o velho de meia vassoura sentiu-se à vontade para dar seu testemunho meteorológico.

-  Que calor, não?!

Respondi qualquer coisa e ele descarrilhou.

- Mesmo com quentura, eu gosto de morar aqui. Embu das Artes é um lugar tranquilo, como você pode ver, mas tem muita gente ruim...

- É... Mas deve ter gente boa também, o senhor não me parece ruim.

- Eu sou um homem sossegado, moro naquela ruazinha ali de cima, tá vendo? Ali, ó, depois da padaria, lá eu moro e trabalho, conserto guarda-chuvas.

- Então é o senhor do tempo?

- Pode ser, mas hoje em dia quase ninguém mais conserta guarda-chuva. -Disse desanimado.

- É verdade. Eu mesmo não mando consertar. – Palpitou a tia do folheto, arrastando os passos e indo embora.

 - Tá vendo? Hoje a maioria das pessoas é assim, ninguém quer arrumar nada, joga fora e compra outro, igual o alfaiate, ele também quase não deve ter trabalho...

- O sapateiro...

- Antigamente era diferente, tudo era diferente... Sou mineiro, saí de minha cidade muito novo com 14 anos. Sabe quando eu cheguei em São Paulo? Há muito tempo, sua mãe nem devia ter nascido, foi em 1951...

De volta a 2013, da catraca eu ouvi:

- Vai minha filha, boa sorte! Vem me visitar, e não jogue guarda-chuva fora. 



Angelina Miranda é jornalista e escritora sem livros.
Ri alto, é fã de jabuticaba, cachorro, botecos e maus modos.
Dá uns pitacos pelo Feici e faz uns versos no Poesias Angelinas.

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Tomando a palavra pelo uso

Se dependesse da gramática tradicional, “a gente” seria uma oração incompleta, formada por artigo mais substantivo, ortograficamente separados. Mas como “a gente” pode se considerar pronome pessoal da primeira pessoa do plural, é de comum acordo que sejamos feito nós bem dados. Temos convicção plena de que AGENTE tem mais é que ficar junto. 



Usando nossa língua e linguagem para falar de amor.



Ronaldo Nunes é mineiro, mas mora em Fortaleza.
É poeta, estudante de Letras e apaixonado pelo conhecimento. 
Há três anos mantêm o blog 4 Ps da Leitura, e também está no Facebook. 

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Casa de patroa

Foto: Almeida Rocha/Folha
Mamãe não tem meio termo. Lasca-me um tapa na fuça, e logo me põe no colo beijando minha testa, desculpando-se com voz mais infantil que a minha.

Até seu café não tem meio termo. Côa uma tinta capaz de pintar asfalto, e um desenxabido mijo de padre. Eu misturo, se ficar forte demais ou fraco de menos, talvez tenha a manhã seguinte para tentar de novo.

O café vem com meu mexido preferido: ovo frito, com banana e farinha de mandioca; como de olhos fechados, só abro a boca. E vamos nós pra casa da patroa.


Quando estou aqui transpiro alecrim. Móveis novos e bonitos, paredes limpas e espaço para respirar. Os cachorros são mais limpos que os nossos, é verdade, mas não sabem abanar o rabo. Não gosto deles.

Vou ao banheiro e até me esqueço de que o xixi parou de cair. Em cada quadrado branco, uma flor, em cada flor uma cor; azul, amarela e laranja, depois repete e começa de novo, azul, amarela e laranja, azul, amarela e laranja... Pensei em perguntar para mamãe quem tinha pisado nas flores do nosso banheiro, mas desisti, ela não gosta de perguntas, principalmente das minhas.

Mas eu gosto mesmo é da janela da sala. Subo no sofá, desatarraxo o trinco e repouso no parapeito. Olho a cidade pequenininha, as pessoas se esbarrando lá embaixo, e o som dos carros e a gritaria das bocas rastejando tentando alcançar meus ouvidos, e eu levinha, levinha. Seria legal ter uma janela dessa, em que a gente se sente grande...

Hoje o dia passou rápido. Desço de mãos dadas com mamãe pela caixa-bonita-com-espelho que em segundos nos coloca de novo no chão.

Caminhando para o ponto de ônibus, vejo zumbis com roupas velhas, cabelos espetados e olhos apagados, gente bem parecida comigo e com a minha mãe. A gente existe mal.

Mas eu estou bem, mesmo voltando para as goteiras, o mofo e para meu colchão magro estou com o livro do Pedrinho loirinho, acho que ele não vai ligar...



Angelina Miranda é jornalista e escritora sem livros.
Ri alto, é fã de jabuticaba, cachorro, botecos e maus modos.
Dá uns pitacos pelo Feici e faz uns versos no Poesias Angelinas.

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Quanto cabe numa palavra?

Nascido em Paris, Sponville tem grande influência  
de nomes como Sartre e Dostoievski.
Nos sonhos e pesadelos, no café da manhã, trabalho e jantar, até quando a língua cansa, estamos dizendo alguma coisa. Gastamos de 10 a 11 horas por dia nos comunicando verbalmente, seja falando, lendo ou escrevendo (em tempos de Facebook, esse número pode ser maior). Mas mesmo com tanta ‘prática’, nem sempre fazemos o melhor uso da língua, digo tanto no sentido de utilizar uma palavra empregando outro significado, como também, por mergulharmos tão pouco no oceano de possibilidades que pode conter a palavra.

‘Adulto’, por exemplo, na maioria das vezes, é utilizado apenas para distinguir os pequenos dos grandes, uma ponte que divide o aparente abismo que há entre o que é ser criança e adulto, mas parece que o rio não é tão raso assim.

“Adulto: Aquele cujo corpo deixou de crescer – que já não pode crescer, a não ser por meio da alma. É ser fiel à infância, recusando-se a encerrar-se nela. Porque todas as crianças querem crescer. O infantilismo é uma doença de velhos”.

André Comte-Sponville no seu “Dicionário Filosófico”, vai muito além das definições frias e objetivas a que estamos acostumados a ler nos Aurélios por aí. De maneira meticulosa, ele pensa a língua, investiga a palavra, revelando origem e essência, tantas vezes esquecidas nas curvas do tempo...

Letras adiante, ele nos diz sobre a ansiedade; com a espetacularização da violência e o medo injetado nas grandes cidades, e até nas pequenas, ela tem funcionado como um regulador social, que restringe as possibilidades de estar efetivamente na vida e vivê-la. Se enfurne, ponha mais trancas, tome o café em casa, a violência está na rua, a morte na calçada.
“O ansioso sempre está um medo à frente: ele verifica três vezes se fechou a porta, teme ser seguido ou agredido, teme sempre – tanto para si como para seus próximos – a doença, os acidentes, o infortúnio. Toma, contra o seu medo, um arsenal de precauções, que só fazem aumentar o medo. Tem medo de sentir medo e se apavora com isso”.

Ainda que a solidão seja uma condição comum a todos nós, há a tendência de confundi-la com o isolamento, e reduzi-la a um sentido meramente soturno e negativo. Ai daquele que opta por ficar em casa numa sexta-feira à noite, logo é digno de pena, está só, não tem ninguém.
“A solidão é nossa condição ordinária: não por termos relações com os outros, mas porque essas relações não poderiam abolir nossa solidão essencial, que decorre do fato de sermos os únicos a ser o que somos e a viver o que vivemos. “Na medida em que somos sós, o amor e a morte se aproximam”, escreve Rilke. Não é que não haja amor, ou que sejamos os únicos a morrer; mas é que ninguém pode morrer ou amar em nosso lugar. Assim, o isolamento é a exceção; a solidão, a regra. É o preço a pagar por ser si mesmo.”

Um dia uma menina de uns cinco anos me perguntou: O que é ser Mulher? Pensei, pensei mas de nada adiantou, às vezes, o que parece ser o mais simples e óbvio é o mais difícil de explicar.
“Dirão que o que importa é a humanidade, não o sexo. Pode ser. Mas tampouco é anedótico o fato de a humanidade ser sexuada. A diferença sexual é, sem dúvida, uma das mais fortes, das mais constantes, das mais estruturantes que há. No entanto, a diferença entre os dois sexos permanece vaga e deve tanto ou mais à cultura, ao que tudo indica, do que à natureza. “Não nascemos mulher”, dizia Simone de Beauvoir, “tornamo-nos mulher.”

Sobre as diversas formas de acontecer mulher, ele conclui: “Uma pessoa nasce mulher ou homem, depois se torna o que é, de maneira mais ou menos feminina ou masculina, mas pouco importa esse devir, ainda que deva tudo à cultura, é um dos mais bonitos presentes que a humanidade deu a si mesma.”.