terça-feira, 29 de outubro de 2013

Mães prestam, mulheres são vadias



– Essas meninas não prestam! Com tão pouca idade já querem dar para o meu filho!
Foi o que disse a mãe de um menino de 14 anos, ao descobrir que ele e a namorada, da mesma idade e classe, transaram.

– Essas meninas se jogam... Come, mas usa camisinha. – Aconselhou.

É interessante pensar o modo como os pais, em especial as mães, e a sociedade em geral, enxergam a sexualidade dos filhos, de acordo com o sexo do primogênito. Imagino se a mãe desse garoto o aconselharia da mesma forma se ele fosse ela. Imaginem: “Esses meninos não valem nada, né, mas se é só sexo, o que é que tem? Vai lá, dá mesmo, filhota!”

Mas o mais importante e inacreditável é como os filhos, na visão de muitas mães, sempre são inocentes e incapacitados de fazer escolhas, sendo sempre influenciados por “más companhias” ou por vadias de 14 anos.

Mesmo com a realidade revelando as mudanças no pensamento, nos costumes, na cultura brasileira (mulher votando, mulher escolhendo o próprio marido ou marida, mulher trabalhando, mulher com autonomia sobre o corpo), ainda assim, conservamos com boa dose de formol esses e outros comportamentos do século XX, como se o tempo não tivesse passado, como se o novo não tivesse chegado. 

Mulheres à la Bolsonaro.

Mas, e aí, se essa mãe, que também é mulher, não acha bacana que o marido seja infiel e coma geral, vizinhas, cunhadas, amigas, porque vê algo de garboso em preparar seu filho para que seja um? Daria uma boa tese.

Esse menino do “come à vontade, só usa camisinha” tem potencial para ser, amanhã, o marido que passa o rodo e diz que a mulher é “vagabunda” porque aceitou carona do amigo do trabalho, o marido que reclama da louça suja, mas que não tem coragem de lavar, o marido que acha normal bater em mulher...

Afinal, meu filho passa nervoso, ela não cozinha direito como eu, não faz o que ele gosta, e a roupa dele? Toda amassada, meu deus... Meu filho tem razão, a mulher é que não presta.  


Angelina Miranda é jornalista e escritora sem livros.
Ri alto, é fã de fotografia, cachorro, botecos e maus modos.
Dá uns pitacos pelo Feici e faz uns versos no Poesias Angelinas.

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Cães libertados, viva o vandalismo

Foto tirada da página Adote um animal resgatado do Instituto Royal. 
"Finalmente aprendendo a viver como um cão."
Graças a vândalos e maloqueiros, 178 de cães da raça beagle foram resgatados semana passada do Instituto Royal, em São Roque, interior de São Paulo.

O caso, divulgado largamente, chamou a atenção pela ousadia e, também, pelo ineditismo da ação. Rapidamente, muitas pessoas se manifestaram, contra e a favor. Estou no segundo grupo.

Um dos que não viram com bons olhos o resgate foi o promotor de Meio Ambiente de São Roque, Wilson Velasco. Ele argumenta que a invasão pode ter prejudicado as investigações conduzidas pelo Ministério Público de São Paulo que recebeu denúncias de maus-tratos a cães.

Pois bem, estamos em outubro, as investigações estão sendo feitas desde o ano passado, 2012; parece que o processo está um pouco devagar.

Nesse sentido, os ativistas parecem que fizeram mais do que o MP. Está circulando nas redes sociais, Facebook e Twitter, fotos e relatos sobre o estado dos cães. Além dos traumas físicos, há os psicológicos. Muitos deles têm medo e dificuldade em se relacionar com humanos.

Ou seja, o que antes era suspeita, agora é certeza.

Os responsáveis serão autuados? Não. Muito pelo contrário, é o Instituto Royal que irá processar os ativistas. Mesmo com as evidências, não se discute nada disso. Dedica-se tempo para a velha lenga-lenga do vandalismo, nesse caso, priorizando objetos quebrados no lugar de vidas.

Comenta-se que os prejuízos são grandes, que os “terroristas” destruíram tudo. Que o pobre Instituto Royal contribui muito para o desenvolvimento de medicamentos para humanos, e que o uso de animais em testes é necessário.

Mas, como se sabe, a verdade não é absoluta.

Em entrevista à TV Brasil, a professora de medicina da Universidade Federal do ABC, Odete Miranda, afirmou que sim, que é possível fazer testes sem o uso de animais.

– Existe pele sintética, existem testes in vitro, toxidade em célula em hemácias, é possível sim.

Mas, talvez, usar animais saia mais barato do que investir nessas tecnologias, então suponho que o Instituto tenha economizado bastante. Se o problema é dinheiro, separem as economias e comprem de novo o que foi quebrado.  

Aposto que vai ter até gente querendo ajudar, o Reinaldo Azevedo da Veja seria um deles. Domingo mesmo ele nos brindou com sua inteligência em um texto primoroso intitulando os ativistas de “grupelhos obscurantistas”, e justificando os maus-tratos porque o especismo existe e a vida é assim mesmo, “E uma imposição da nossa civilização”.

Retomando, sobre os protestos a maioria dos direitos que desfrutamos hoje não foi conquistado com flores e afagos, mas sim com luta, com embate. Essa é uma realidade, a pressão popular é o que surte efeito. Vide os 0, 20 centavos que fizeram Alckmin e Haddad mudarem, assim de repente, de posicionamento.

Com flores e afagos os protetores não resgatariam nem meio cachorro. Invadiram, sim, quebraram, sim, para fazer o que tinha que ser feito. Mais do que nunca os fins justificam os meios. 



Angelina Miranda é jornalista e escritora sem livros.
Ri alto, é fã de fotografia, cachorro, botecos e maus modos.
Dá uns pitacos pelo Feici e faz uns versos no Poesias Angelinas.

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Comissão do Feliciano: Casa de deus, não de gays

O programa, que leva o nome do pastor, segue o estilo Talk show, 
com direito a matérias, entrevistas e pregações. 
Desde que assumiu a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, o deputado-pastor Marco Feliciano (PSC-SP) não sai mais dos noticiários. Quando você esfrega o olho lá estão as manchetes: Feliciano bebeu um copo d’água, odeia atabaques e seus adeptos, deseja a volta da escravidão, e, agora, gay na minha igreja não.

Nesta quarta-feira (16) foi aprovado o projeto de lei do deputado Washington Reis (PMDB-RJ) que permite a organizações religiosas expulsarem de seus templos pessoas que "violem seus valores, doutrinas, crenças e liturgias". 

Ou seja, o projeto quer evitar que os religiosos sejam criminalizados caso se recusem a realizar casamentos homossexuais, batizados ou a aceitar a presença deles em templos religiosos.

É mais do que obvio, pela denominação, que a premissa que se tem dessa comissão é que trabalhe por uma sociedade mais justa e igualitária, atendendo às necessidades das minorias, não segregando-as ainda mais.

Mas é sabido, também, que são muitos os interesses dos empresários-pastores na política, e aí você sabe, os pretos, os gays, os pobres, o povo, fica meio esquecido. 

Voltando ao projeto, é importante lembrar que as igrejas protestantes têm por princípio, moral e tradição não conviver com práticas homossexuais, que dirá casamentos. Os pastores sabem disso, os fiéis sabem disso. Então qual a necessidade dessa lei?

Em matéria da Folha, Reis explica:

- Deve-se a devida atenção ao fato da prática homossexual ser descrita em muitas doutrinas religiosas como uma conduta em desacordo com suas crenças. Em razão disso, deve-se assistir a tais organizações religiosas o direito de liberdade de manifestação.

Quem está fechando as portas das igrejas? Sequestrando pastores e obreiros, quem tapou a boca dos “emissários de deus”?

Ninguém. Não há censura. Muito pelo contrário, as igrejas crescem cada vez mais no Brasil, estão nos canais de TV e programas de rádio. Há tantos empreendimentos que alguns até perdem a mão na administração, como o Pastor Valdemiro Santiago, da Igreja Mundial, que pediu recentemente a seus fiéis contribuição para pagar uma dívida de R$ 21 milhões.

Por essa e outras, não compreendo o argumento da “liberdade de manifestação”. Entendo-o como legítimo a respeito de quem não tem, de fato, espaço e oportunidade para se manifestar, os gays, os negros, as mulheres. As minorias, ditas na comissão.

Mais uma vez, vemos esforços para criação de uma lei que não beneficia ninguém. Nem a mim que escreve nem a você que lê, menos ainda aquele mar de gente que frequenta os templos em busca de paz e salvação, mas ajuda sim. Ajuda a um grupo de fundamentalistas religiosos que se embrenharam na política, mas que vivem da igreja e fazem dela seu ganha pão, ganha champagne, ganha carros, anéis de ouro...

Se levada a cabo, acredito que essa lei não irá afetar diretamente a vida dos homossexuais, mas contribui – e muito – para o aumento da discriminação contra os gays, tanto por fomentar a já crescida intolerância religiosa, quanto por legitimar atos preconceituosos com a justificativa da religião.

Antes de colocar todos os pecados da política na conta do Feliciano, lembrem-se que foi o PT que abriu mão da Comissão de Direitos Humanos de olho na Comissão de Constituição e Justiça, que irá aprovar ou não o texto do projeto de lei. 



Angelina Miranda é jornalista e escritora sem livros.
Ri alto, é fã de fotografia, cachorro, botecos e maus modos.
Dá uns pitacos pelo Feici e faz uns versos no Poesias Angelinas.

domingo, 6 de outubro de 2013

“Região sem favela” é o slogan de construtora em Fortaleza

Flyer distribuído nas avenidas de Fortaleza.  
Passaré nunca foi considerado um bairro “nobre” na capital do Ceará, mas depois da reforma do Estádio Castelão para a Copa de 2014, empresas de diversos segmentos passaram a investir na região.

Uma delas é a Jatahy Engenharia, responsável pela construção do edifício “Recanto dos Sabiás”. 
Pensando em atrair compradores para os apartamentos, a construtora garante: “Para quem busca o perfeito equilíbrio entre beleza e tranquilidade. Uma região sem favela”.

Zero farofa, feiura e panelaço, com uma vizinhança "classe única". 

Se querem fazer crer que o êxito da segurança e tranquilidade dependem de anos luz de distância das favelas, o mesmo não podem afirmar sobre o edifício estar à “salvo” delas. As quebradas.

Ano passado estive em Fortaleza. Passeando pelos arredores do Castelão vi várias casas simples, de tijolo baiano, sem reboco, janelas de alumínio... Casas pobres. Em ruas pobres.

Havia em algumas dessas casas faixas que diziam: “O único legado que quero que a copa deixe é a minha casa”.

Mesmo com o aclamado “boom” imobiliário, a favela existe, está lá, e muito antes da chegada dos edifícios-paraíso-na-terra.

Se postos em prática é outra história, mas não deixam de ser bonitos e comprometidos os valores da construtora, vejam só:

“Primar pela ética, respeito e transparência, tornado acima de tudo, uma vida mais justa, fraterna e de iguais condições para todos.” (sic)


Para todos. Mas, por favor, sem favelas. 


Angelina Miranda é jornalista e escritora sem livros.
Ri alto, é fã de fotografia, cachorro, botecos e maus modos.
Dá uns pitacos pelo Feici e faz uns versos no Poesias Angelinas.

terça-feira, 1 de outubro de 2013

Marcelo Mirisola, O azul do filho morto e as banalidades da classe média


Paulistano, nascido em 1966, Mirisola já publicou diversos títulos 
entre contos, crônicas e romances. 

Nunca li Marcelo Mirisola. Não sabia que ele era. Nem que era bom.

Aí um filho de deus me fala do “O azul do filho morto”. Um romance esquisito, irônico e cheio de verdades gosmentas e indigestas.

De início, é brilhante a “falta de dedos” e o olhar de dentro do narrador que expõe sem meias palavras os hábitos e pensamentos de uma típica família de classe média brasileira, de 1970 e 1980. O Brasil é de ditadura, é verdade, mas é um país feliz. Pelo menos para uma fatia da sociedade que desfruta da “dádiva seletiva”, o conhecido e reverenciado “Milagre econômico”.

Pois bem, a felicidade é uma churrasqueira recheada, as crianças no carro no passeio de fim de semana e um domingo no clube, claro, com seus ridículos e banalidades:

“Dá nojo. Mas todo cemitério é o mesmo clube. A sociedade Esportiva Palmeiras, o Clube Regatas Tietê. Ou o Getsêmani, tanto faz. Qualquer lugar desses cobra mensalidade e exige atestado de óbito pra entrar. Os bustos de bronze usam costeletas. É o seguinte. O cara faz uma proposta de admissão. Aí ele diz que é gerente de marketing casado com fulana profissional de RH. Tem dois filhos lindos e maravilhosos matriculados no Santo Américo, e pronto. Tá aceito. Um morto associado com carteirinha e tudo.”

Com doses de humor, limão e desdém, ele revela o podre de cada um, o chorume da família.
A mãe histérica que nomeia o filho de “isso” ou “isso aí”, o avô “racista, generoso e sentimental” que trabalha no mercadão e usa balanças adulteradas e a velha rica e rasa, a avó:

“Uma vez vovó que sofria – do cocuruto – de maldade, peruagem e de esquecimentos atrozes, acusou uma “negrinha desgraçada” de roubar suas joias. Eu me lembro deste episódio para lembrar da minha mãe e dos ovos que, de três em três horas, eu, débil mental (“isso”), garoto estranho que vivia olhando pra baixo, fui obrigado a engolir. Eu quero dizer o seguinte: se eu não comesse os malditos ovos as cabeças explodiriam contra as paredes. Ou melhor, a autoridade da minha mãe começava na minha avó e terminava na parede.”

No decorrer do livro, é possível adentrar o universo daquele poema do heterônimo de Fernando Pessoa, Álvaro de Campos, Poema em linha reta. O sujeito nunca encontra um perdedor, alguém que tivesse sofrido fracassos, ninguém pobre, desanimado, triste ou ridículo. Um exército de polidos vencedores.

Em o “Azul do filho morto”, Mirisola rasteja-se erguido, aos risos, facadas e deboches daquilo que boa parte de nós, vivos ou não, veneramos como maravilhas, ou simplesmente engolimos como tais.


Por gosto e tesão da avó “Um garoto triste cavalgava faxineiras”. Primeiro capítulo.