terça-feira, 10 de dezembro de 2013

A quebrada mudou

O carrinho de rolemã era febre nas ruas de asfalto e de barro. 
 Hoje, a adrenalina é enxugar vodka, e o brinquedo virou lenda.  

A quebrada mudou. Aliás, nem quebrada é, virou “comunidade”. Aqui, Carlinhos Brown adaptaria o seu hit: “A empregada, tem empregada, verdaaade...”. As coisas mudaram. Mamãe, doméstica há 20 anos, agora tem diarista.

- Aria tudim, quero meus alumínio brilhando que nem espelho, Zilda! – Mamãe tem dinheiro, mas nota não apaga costume. Ela não confia no teflon.

 Zilda adora trabalhar em casa, mais do que ir para a Vila Mariana, na casa de dona Laura, carinhosamente conhecida como “véia nojenta”. Em casa, come bolo de fubá, toma café, vê a novela e atende o celular sem levar esculachos. As benesses de se ter uma patroa-empregada.

As ruas também mudaram.

Antes, trânsito só na cidade. Era um vendável de crianças nas ruas... Pipa. Bola. Peão. Carrinho de rolemã. Salada mista. Ninguém se importava com roupas ou tênis. Nossos molambos eram o de menos, o joelho ralado doía mais.

A bicicleta era comunitária, claro, não sabíamos disso, só agradecíamos ao Márcio, o menino do sobrado que emprestava suas duas rodas para a rua toda.

Os fins de tarde eram sempre um “pega pra capar”. Mães com chinelos e espadas de São Jorge em punho, se apoiavam nos portões à espera dos filhos que, inebriados pelos amigos e pelas descobertas que a rua proporciona, se esqueciam de casa e dos perigos. Não jantávamos, mas vivíamos. 

Carro era luxo de poucos. Quem andava num Uno 97 já tinha do que se gabar na escola. Celular só no cinema. Cinema só no natal, décimo terceiro. Isto, para os pais de carteira azul. 

Brincamos de roda e nela contávamos histórias mal assombradas. Nada de indiretas, quando havia divergência, batíamos nos colegas, depois nos abraçávamos e estava tudo certo.

A rua era de casa e de gente, não de empresários e comércios.

Aí, chegou o metrô, Linha Lilás. Esperança, gosto dessa cor. Trem lerdo, diga-se de passagem. Da primeira notícia até a primeira viagem, passou um bocado de tempo. Tempo este suficiente para emergirem de nossas casas e barracos convidativas lojas. Lojas de roupas, calçados, ah, tem de vestimentas, chinelos, tem até uns modelos Plus Size; e claro, tem umas que vendem sapatos e roupas, também.


Aqui é o lugar em que a gente se cobre, cobre, cobre, e não consegue esconder as filas no AMA, os córregos que derramam quando chove, os ônibus lotados... Essa loja ainda não abriram aqui.

E o pivô é o tempo, este rio a nos guiar.

As mães migraram dos portões para as portas dos quartos, inquietas em descobrir que diabo tem o tal Facebook, que os meninos não desgrudam do computador. Os moleques não andam mais de bicicleta, estão nos rolês enxugando vodka a fim descolar quem vai comer a Larissa da 6ª A. Os molambos sinceros foram trocados por roupas de grife, ou por etiquetas costuradas. Criança de sete anos já exige celular. Com wi-fi, hein!

Nas calçadas não há lugar para estacionar os pés. O ano é 2013, mas o carro é 2014. Adeus fuscas, chevetes e passats coloridos.

Mas tem coisas que não mudam. As rugas de dona Almerinda, sua diabetes e a falta de atendimento no pronto socorro, mas dizem que a velha é reclamona, e como bem lembrou Ronaldo, o fenômeno das frases: “Não se faz copa com hospital”.


Angelina Miranda é jornalista e escritora sem livros.
Ri alto, é fã de fotografia, cachorro, botecos e maus modos.
Dá uns pitacos pelo Feici e faz uns versos no Poesias Angelinas

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Negahamburguer além da capa

Criadora e criatura. 
Num sábado de sol e preocupações, entrei no ônibus. Sem crédito no bilhete, recorri as nicas escondidas no fundo da bolsa e segui viagem estralando os dedos. O TCC comia o meu juízo e o que restara de mim, ia encontrar alguém que pudesse me dar uma luz e até mentir, dizer que tudo ia ficar bem.

Fiz um livro reportagem: “Kantuta: Memórias da flor”, sobre a Feira Kantuta, principal reduto da colônia boliviana em São Paulo, e precisava de alguém para diagramação. Depois da indicação de um amigo, resolvi que Evelyn Queiroz faria o serviço. Ouvi boas críticas sobre ela e fui ao encontro com fagulhas de esperança.

Marcamos numa padaria no Capão Redondo, de cara houve sintonia. Com duas cervejas resolvemos o livro e começamos a desenrolar umas ideias. Falamos de nossos trabalhos e do desejo em largá-los. Das viagens que faríamos e dos sonhos que tínhamos. Falamos do sexo na vida das mulheres e, também, dos homens que dizem manjar de sinos, mas que não tocam nada.

Papo vai, papo vem, Evelyn comentou da Negahamburguer, sua cria que, aquela época, ainda engatinhava. Depois de um tempo, com a viralização de seu trabalho nas redes, vi que se tratava de algo maior. Um personagem real, uma mulher com corações de mulheres. Gordas, magrelas, mães, negras, com pelos, pneus, bundas diversas e peitos caídos. Mulheres vivas.

Com o mantra “Aceite seu corpo”, de longe, vi Evelyn crescer, e a Negahamburguer tomar corpo. Corpos de pessoas vitimadas pelo câncer e pela sociedade tomam o coração da artista e pulam para as telas. Evelyn come a dor do outro e devolve afeto. 

Mistura fina de amor e arte.

E a delicadeza também está presente à parte das tintas e pincéis; na paixão pelos cachorros, na costura de seus vestidos, no pai que leva no braço e no gosto por livros... Aliás, ficou com um meu “O livro amarelo do terminal”, que nunca devolveu. Mas, em mim, quantas coisas deixa com seus desenhos... Tudo bem, pode ficar.

Depois de idas e vindas, problemas seculares com a gráfica, e enfim findado o livro, disse que encheria uma laje, mas que JAMAIS faria capa nem contracapa de TCC para seu ninguém.

Ela tem razão. Quem precisa de capa quando há conteúdo? 










Para mais informações, acesse a página da Negahamburguer no Facebook


Angelina Miranda é jornalista e escritora sem livros.
Ri alto, é fã de fotografia, cachorro, botecos e maus modos.
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terça-feira, 29 de outubro de 2013

Mães prestam, mulheres são vadias



– Essas meninas não prestam! Com tão pouca idade já querem dar para o meu filho!
Foi o que disse a mãe de um menino de 14 anos, ao descobrir que ele e a namorada, da mesma idade e classe, transaram.

– Essas meninas se jogam... Come, mas usa camisinha. – Aconselhou.

É interessante pensar o modo como os pais, em especial as mães, e a sociedade em geral, enxergam a sexualidade dos filhos, de acordo com o sexo do primogênito. Imagino se a mãe desse garoto o aconselharia da mesma forma se ele fosse ela. Imaginem: “Esses meninos não valem nada, né, mas se é só sexo, o que é que tem? Vai lá, dá mesmo, filhota!”

Mas o mais importante e inacreditável é como os filhos, na visão de muitas mães, sempre são inocentes e incapacitados de fazer escolhas, sendo sempre influenciados por “más companhias” ou por vadias de 14 anos.

Mesmo com a realidade revelando as mudanças no pensamento, nos costumes, na cultura brasileira (mulher votando, mulher escolhendo o próprio marido ou marida, mulher trabalhando, mulher com autonomia sobre o corpo), ainda assim, conservamos com boa dose de formol esses e outros comportamentos do século XX, como se o tempo não tivesse passado, como se o novo não tivesse chegado. 

Mulheres à la Bolsonaro.

Mas, e aí, se essa mãe, que também é mulher, não acha bacana que o marido seja infiel e coma geral, vizinhas, cunhadas, amigas, porque vê algo de garboso em preparar seu filho para que seja um? Daria uma boa tese.

Esse menino do “come à vontade, só usa camisinha” tem potencial para ser, amanhã, o marido que passa o rodo e diz que a mulher é “vagabunda” porque aceitou carona do amigo do trabalho, o marido que reclama da louça suja, mas que não tem coragem de lavar, o marido que acha normal bater em mulher...

Afinal, meu filho passa nervoso, ela não cozinha direito como eu, não faz o que ele gosta, e a roupa dele? Toda amassada, meu deus... Meu filho tem razão, a mulher é que não presta.  


Angelina Miranda é jornalista e escritora sem livros.
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segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Cães libertados, viva o vandalismo

Foto tirada da página Adote um animal resgatado do Instituto Royal. 
"Finalmente aprendendo a viver como um cão."
Graças a vândalos e maloqueiros, 178 de cães da raça beagle foram resgatados semana passada do Instituto Royal, em São Roque, interior de São Paulo.

O caso, divulgado largamente, chamou a atenção pela ousadia e, também, pelo ineditismo da ação. Rapidamente, muitas pessoas se manifestaram, contra e a favor. Estou no segundo grupo.

Um dos que não viram com bons olhos o resgate foi o promotor de Meio Ambiente de São Roque, Wilson Velasco. Ele argumenta que a invasão pode ter prejudicado as investigações conduzidas pelo Ministério Público de São Paulo que recebeu denúncias de maus-tratos a cães.

Pois bem, estamos em outubro, as investigações estão sendo feitas desde o ano passado, 2012; parece que o processo está um pouco devagar.

Nesse sentido, os ativistas parecem que fizeram mais do que o MP. Está circulando nas redes sociais, Facebook e Twitter, fotos e relatos sobre o estado dos cães. Além dos traumas físicos, há os psicológicos. Muitos deles têm medo e dificuldade em se relacionar com humanos.

Ou seja, o que antes era suspeita, agora é certeza.

Os responsáveis serão autuados? Não. Muito pelo contrário, é o Instituto Royal que irá processar os ativistas. Mesmo com as evidências, não se discute nada disso. Dedica-se tempo para a velha lenga-lenga do vandalismo, nesse caso, priorizando objetos quebrados no lugar de vidas.

Comenta-se que os prejuízos são grandes, que os “terroristas” destruíram tudo. Que o pobre Instituto Royal contribui muito para o desenvolvimento de medicamentos para humanos, e que o uso de animais em testes é necessário.

Mas, como se sabe, a verdade não é absoluta.

Em entrevista à TV Brasil, a professora de medicina da Universidade Federal do ABC, Odete Miranda, afirmou que sim, que é possível fazer testes sem o uso de animais.

– Existe pele sintética, existem testes in vitro, toxidade em célula em hemácias, é possível sim.

Mas, talvez, usar animais saia mais barato do que investir nessas tecnologias, então suponho que o Instituto tenha economizado bastante. Se o problema é dinheiro, separem as economias e comprem de novo o que foi quebrado.  

Aposto que vai ter até gente querendo ajudar, o Reinaldo Azevedo da Veja seria um deles. Domingo mesmo ele nos brindou com sua inteligência em um texto primoroso intitulando os ativistas de “grupelhos obscurantistas”, e justificando os maus-tratos porque o especismo existe e a vida é assim mesmo, “E uma imposição da nossa civilização”.

Retomando, sobre os protestos a maioria dos direitos que desfrutamos hoje não foi conquistado com flores e afagos, mas sim com luta, com embate. Essa é uma realidade, a pressão popular é o que surte efeito. Vide os 0, 20 centavos que fizeram Alckmin e Haddad mudarem, assim de repente, de posicionamento.

Com flores e afagos os protetores não resgatariam nem meio cachorro. Invadiram, sim, quebraram, sim, para fazer o que tinha que ser feito. Mais do que nunca os fins justificam os meios. 



Angelina Miranda é jornalista e escritora sem livros.
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quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Comissão do Feliciano: Casa de deus, não de gays

O programa, que leva o nome do pastor, segue o estilo Talk show, 
com direito a matérias, entrevistas e pregações. 
Desde que assumiu a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, o deputado-pastor Marco Feliciano (PSC-SP) não sai mais dos noticiários. Quando você esfrega o olho lá estão as manchetes: Feliciano bebeu um copo d’água, odeia atabaques e seus adeptos, deseja a volta da escravidão, e, agora, gay na minha igreja não.

Nesta quarta-feira (16) foi aprovado o projeto de lei do deputado Washington Reis (PMDB-RJ) que permite a organizações religiosas expulsarem de seus templos pessoas que "violem seus valores, doutrinas, crenças e liturgias". 

Ou seja, o projeto quer evitar que os religiosos sejam criminalizados caso se recusem a realizar casamentos homossexuais, batizados ou a aceitar a presença deles em templos religiosos.

É mais do que obvio, pela denominação, que a premissa que se tem dessa comissão é que trabalhe por uma sociedade mais justa e igualitária, atendendo às necessidades das minorias, não segregando-as ainda mais.

Mas é sabido, também, que são muitos os interesses dos empresários-pastores na política, e aí você sabe, os pretos, os gays, os pobres, o povo, fica meio esquecido. 

Voltando ao projeto, é importante lembrar que as igrejas protestantes têm por princípio, moral e tradição não conviver com práticas homossexuais, que dirá casamentos. Os pastores sabem disso, os fiéis sabem disso. Então qual a necessidade dessa lei?

Em matéria da Folha, Reis explica:

- Deve-se a devida atenção ao fato da prática homossexual ser descrita em muitas doutrinas religiosas como uma conduta em desacordo com suas crenças. Em razão disso, deve-se assistir a tais organizações religiosas o direito de liberdade de manifestação.

Quem está fechando as portas das igrejas? Sequestrando pastores e obreiros, quem tapou a boca dos “emissários de deus”?

Ninguém. Não há censura. Muito pelo contrário, as igrejas crescem cada vez mais no Brasil, estão nos canais de TV e programas de rádio. Há tantos empreendimentos que alguns até perdem a mão na administração, como o Pastor Valdemiro Santiago, da Igreja Mundial, que pediu recentemente a seus fiéis contribuição para pagar uma dívida de R$ 21 milhões.

Por essa e outras, não compreendo o argumento da “liberdade de manifestação”. Entendo-o como legítimo a respeito de quem não tem, de fato, espaço e oportunidade para se manifestar, os gays, os negros, as mulheres. As minorias, ditas na comissão.

Mais uma vez, vemos esforços para criação de uma lei que não beneficia ninguém. Nem a mim que escreve nem a você que lê, menos ainda aquele mar de gente que frequenta os templos em busca de paz e salvação, mas ajuda sim. Ajuda a um grupo de fundamentalistas religiosos que se embrenharam na política, mas que vivem da igreja e fazem dela seu ganha pão, ganha champagne, ganha carros, anéis de ouro...

Se levada a cabo, acredito que essa lei não irá afetar diretamente a vida dos homossexuais, mas contribui – e muito – para o aumento da discriminação contra os gays, tanto por fomentar a já crescida intolerância religiosa, quanto por legitimar atos preconceituosos com a justificativa da religião.

Antes de colocar todos os pecados da política na conta do Feliciano, lembrem-se que foi o PT que abriu mão da Comissão de Direitos Humanos de olho na Comissão de Constituição e Justiça, que irá aprovar ou não o texto do projeto de lei. 



Angelina Miranda é jornalista e escritora sem livros.
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domingo, 6 de outubro de 2013

“Região sem favela” é o slogan de construtora em Fortaleza

Flyer distribuído nas avenidas de Fortaleza.  
Passaré nunca foi considerado um bairro “nobre” na capital do Ceará, mas depois da reforma do Estádio Castelão para a Copa de 2014, empresas de diversos segmentos passaram a investir na região.

Uma delas é a Jatahy Engenharia, responsável pela construção do edifício “Recanto dos Sabiás”. 
Pensando em atrair compradores para os apartamentos, a construtora garante: “Para quem busca o perfeito equilíbrio entre beleza e tranquilidade. Uma região sem favela”.

Zero farofa, feiura e panelaço, com uma vizinhança "classe única". 

Se querem fazer crer que o êxito da segurança e tranquilidade dependem de anos luz de distância das favelas, o mesmo não podem afirmar sobre o edifício estar à “salvo” delas. As quebradas.

Ano passado estive em Fortaleza. Passeando pelos arredores do Castelão vi várias casas simples, de tijolo baiano, sem reboco, janelas de alumínio... Casas pobres. Em ruas pobres.

Havia em algumas dessas casas faixas que diziam: “O único legado que quero que a copa deixe é a minha casa”.

Mesmo com o aclamado “boom” imobiliário, a favela existe, está lá, e muito antes da chegada dos edifícios-paraíso-na-terra.

Se postos em prática é outra história, mas não deixam de ser bonitos e comprometidos os valores da construtora, vejam só:

“Primar pela ética, respeito e transparência, tornado acima de tudo, uma vida mais justa, fraterna e de iguais condições para todos.” (sic)


Para todos. Mas, por favor, sem favelas. 


Angelina Miranda é jornalista e escritora sem livros.
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terça-feira, 1 de outubro de 2013

Marcelo Mirisola, O azul do filho morto e as banalidades da classe média


Paulistano, nascido em 1966, Mirisola já publicou diversos títulos 
entre contos, crônicas e romances. 

Nunca li Marcelo Mirisola. Não sabia que ele era. Nem que era bom.

Aí um filho de deus me fala do “O azul do filho morto”. Um romance esquisito, irônico e cheio de verdades gosmentas e indigestas.

De início, é brilhante a “falta de dedos” e o olhar de dentro do narrador que expõe sem meias palavras os hábitos e pensamentos de uma típica família de classe média brasileira, de 1970 e 1980. O Brasil é de ditadura, é verdade, mas é um país feliz. Pelo menos para uma fatia da sociedade que desfruta da “dádiva seletiva”, o conhecido e reverenciado “Milagre econômico”.

Pois bem, a felicidade é uma churrasqueira recheada, as crianças no carro no passeio de fim de semana e um domingo no clube, claro, com seus ridículos e banalidades:

“Dá nojo. Mas todo cemitério é o mesmo clube. A sociedade Esportiva Palmeiras, o Clube Regatas Tietê. Ou o Getsêmani, tanto faz. Qualquer lugar desses cobra mensalidade e exige atestado de óbito pra entrar. Os bustos de bronze usam costeletas. É o seguinte. O cara faz uma proposta de admissão. Aí ele diz que é gerente de marketing casado com fulana profissional de RH. Tem dois filhos lindos e maravilhosos matriculados no Santo Américo, e pronto. Tá aceito. Um morto associado com carteirinha e tudo.”

Com doses de humor, limão e desdém, ele revela o podre de cada um, o chorume da família.
A mãe histérica que nomeia o filho de “isso” ou “isso aí”, o avô “racista, generoso e sentimental” que trabalha no mercadão e usa balanças adulteradas e a velha rica e rasa, a avó:

“Uma vez vovó que sofria – do cocuruto – de maldade, peruagem e de esquecimentos atrozes, acusou uma “negrinha desgraçada” de roubar suas joias. Eu me lembro deste episódio para lembrar da minha mãe e dos ovos que, de três em três horas, eu, débil mental (“isso”), garoto estranho que vivia olhando pra baixo, fui obrigado a engolir. Eu quero dizer o seguinte: se eu não comesse os malditos ovos as cabeças explodiriam contra as paredes. Ou melhor, a autoridade da minha mãe começava na minha avó e terminava na parede.”

No decorrer do livro, é possível adentrar o universo daquele poema do heterônimo de Fernando Pessoa, Álvaro de Campos, Poema em linha reta. O sujeito nunca encontra um perdedor, alguém que tivesse sofrido fracassos, ninguém pobre, desanimado, triste ou ridículo. Um exército de polidos vencedores.

Em o “Azul do filho morto”, Mirisola rasteja-se erguido, aos risos, facadas e deboches daquilo que boa parte de nós, vivos ou não, veneramos como maravilhas, ou simplesmente engolimos como tais.


Por gosto e tesão da avó “Um garoto triste cavalgava faxineiras”. Primeiro capítulo. 

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Vamos demolir o Borba Gato?

Desde 1963 ele está lá. Nascido das mãos e cabeça do escultor Julio Guerra, Borba Gato é lembrado como “o célebre, competente, um dos grandes bandeirantes paulistas”.

Quem passa na Avenida Santo Amaro, em sampa, já o viu. Recheado de trilhos de trem e com casca de ladrilhos, o fizeram alto e imponente, com os olhos perdidos no nada. Sempre acompanhado de seu trabuco, agora, em descanso.

Há poucos dias, rumo ao dentista, perto de mim uma menininha, olhando para o alto, perguntou a mulher:

– Quem é ele, mãe?

– O Borba Gato.

– Porque tá com uma arma na mão, mãe?

– Não sei. Vamo logo menina ou vamo se atrasá!

Treze metros de altura e 20 toneladas de corpanzil, em nós, adultos, causa admiração, para uma criança, o sentimento é de espanto. Isto deve nos dizer alguma coisa.

Mas tem gente que guarda apreço pelo Borba. Não à toa, há uns poucos anos atrás, foi criada a campanha “Vote Borba”.

O projeto? Nada de Cristo Redentor, mas o bandeirante como uma das 7 maravilhas do mundo moderno. Graças a eterna rixa: paulistanos x cariocas, a campanha obteve apoiadores, e até comunidades prós no falecido, Orkut, mas não o suficiente para ganhar a votação.

Veja as magnificas justificativas do idealizador e publicitário, Bá Assumpção, (a profissão diz bastante), para viabilizar a ação:

– O Borba Gato é um herói da nossa nacionalidade. Não fosse por ele ainda estaríamos no Tratado de Tordesilhas. Voltou de Minas cheio de ouro, comprou a Câmara de Vereadores de São Paulo, ficou dono dos defuntos, dos cemitérios, nomeava (sic) gente durante anos...

Incrédulo, pergunta o jovem repórter:

– Mas ele matou um monte de gente, né!?

– O Brasil perdoa quem tem dinheiro. - (Assista à matéria sobre, aqui)


Mas nem tudo são empregos para parentes e amigos, nem defuntos privados. Em tempos de tablets, Smartphones a tempo e a hora, não é necessário ir muito longe para saber dos quilombos e famílias destruídas, dos índios e escravos assassinados, claro, em nome de um "Brasil mais próspero".

No fervor dos protestos no Brasil, em julho, um grupo de jovens renomeou a ponte Estaida, de Otávio Frias de Oliveira, magnata da Folha de S. Paulo e apoiador do regime militar de 1964, para ‘Vladimir Herzog’, jornalista assassinado pelos órgãos de repressão do mesmo regime, em 1975.

Não perdoo gente com dinheiro em troca de dinheiro. Nem admiro estátuas de assassinos do povo e da nossa história.

Que derrubem o Borba Gato e ergam Zumbi dos Palmares.


Angelina Miranda é jornalista e escritora sem livros.
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quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Pedras e urubus, os dias que te matei

Urubu do amor...
Andei pelas ruas achincalhando seu nome.

Contei seus segredos, como quem conversa na feira. Beijei bocas fétidas de palavras podres. Mas seus beiços-cigarro-café, jamais.

Contei a todos os seus defeitos. Sem efeitos, inventava mais alguns.

Joguei em suas costas o peso das pedras e urubus que o vento colocava em meu caminho. O mesmo vento que soprava a nosso favor.

Maldisse seus gostos e costumes. Seu jeito roceiro de viver na cidade, a simplicidade do vestir e falar. Amaldiçoei as cervejas divididas, os risos, as contas que não paguei, as histórias repetidas.

Os malditos garçons da praça Roosevelt sabiam de nós. Sabiam e nada disseram. Não me contaram do cliente de longa data. Dos olhos lascivos, das bundas passantes e penetradas.

Seus tiques de retardado. Insensibilidade, a falta de flor. Um homem que chora. Mas sem sangue e coração. O gozo crescido, o suspiro de menino.

Em comum acordo, jurei a deus e ao diabo, não mais te ver, nem deixar entrar seja por qual porta fosse.

De armadura e trabuco, cheguei. Espremi a campainha que nunca funcionou. Nada de mais, meus livros que esqueci. Já li, mas foram caros.

Sorriso sem dente. Olá e tudo bem, como manda o figurino.

Calor. Geladeira cheia. Educação. Cerveja de intenções. Sofá pequeno. Umas palavras soltas, um olhar preciso.

Um dia.

Dois dias.

Três dias.

Domingo. Pernas xadrez bordam o lençol. Conchas de gente dentro. Abraço e leite com canela.

Não se vive o que se fala. Floresce o que se sente.



Angelina Miranda é jornalista e escritora sem livros.
Ri alto, é fã de jabuticaba, cachorro, botecos e maus modos.
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quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Autoajuda, ajuda?

Autoajuda, não necessariamente a sua. 
Em tempos de enxugamento de gastos, uma matéria fria, isto é, que não se trata de assunto imediato, sempre dá um up nos cadernos de cultura (cultura pero no mucho) dos jornais. Por esses dias a Folha ressuscitou uma matéria de janeiro deste ano, em que diz que a poesia é mais útil ao cérebro do que os milagrosos livros de autoajuda. Se sua cota mensal de matérias não tiver acabado, leia aqui

É verdade. Em instantes precisos da vida, as situações são mesmo desesperadoras. Angústias repentinas que nos algemam, parafusos soltos que ninguém vai rosquear, perguntas que nascem aparentemente do vazio, noites em que choramos, para amanhecer sorrindo, ou tentando.

Nestes dias turvos, para clarear, alguns leem autoajuda; muitas vezes em busca de respostas do tipo: Porque não sou magra? Ou rico? Hein, hein, porque não tenho sucessos na empresa? Ah, meu deus... porque diabos não tenho os homens aos meus pés?

Lembro-me de uma vez em que vi um homem e seu livro, a capa dizia: Como se tornar um milionário. Leia, siga o passo a passo, e embarque para a Suíça. É, por enquanto ainda não, ele vestia uma camisa surrada e estava no metrô...

Será que se existisse uma fórmula milagrosa para o sucesso, para uma vida plena e feliz, o casamento perfeito, a mulher dos sonhos? Será que se existisse a tal poção, seria traduzida e propagada aos quatro ventos, prontinha assim, só ir na saraiva e tá feita a sua parte? 

Acredito que não.

Nós, quem sabe, mas os autores de autoajuda não são bobos. Eles pesquisam, sacam você e fazem livros atraentes. Se já leu algum deles, com certeza se pegou agradecendo a deus: “Mas eu já tinha pensado nisso!”

Que dádiva! Você tem um livro amigo!

Não o que te diz as verdades sem fru-fru quando preciso, mas aquele das opiniões beges, que nunca aceita a cerveja de sexta-feira, mas que está sempre com um elogio na ponta da língua.

Na maioria das vezes, o sujeito ou sujeita cabisbaixo, vendo seu último suspiro como consolo, não tende a discordâncias, nem realidades duras.  Quer ser acarinhado, posto no colo, de preferência ouvindo um sonoro e acalentador: “Vai passar”.

A autoajuda vende rios por isso, diz tudo o que você já sabe. Está lá tudo o que você quer ouvir. O que precisa eu já não sei, é outra história.

Tape o sol com peneira, mas não há receitas, fórmulas, nem remédio para a dor que cure o que nos faz ser o que somos. Sangramos e sorrimos, caímos e levantamos, somos surrados e, quando podemos, devolvemos o golpe. A vida é isso, nós de sombrinha e pés atentos nos equilibrando nessa linha frágil.

Quando cachorros brigarem, se estraçalharem em seu coração, desabe nessa dor. Ela é sua, bem como as alegrias, não rejeite-a. Para que respostas imediatas, porque fazer espetáculo de seus baixos sem altos? 

Quem acha que o seu problema é exatamente o mesmo de 1 bilhão de pessoas, independente dos valores sociais, culturais e econômicos em que você está inserido, não merece sua leitura, quiçá suas tristezas e frustrações.

Tentar são as rodas da vida. Parece que não, mas há sempre outro dia.  Como diz Sérgio Vaz, quando o bicho pegar “não cultive multidões”.

Não cultive autoajuda.


Aproveitando o ensejo, separei os melhores títulos da categoria. Não há limites para o pior.

12 semanas para mudar uma vida – Augusto Cury
Projeto verão, hein, em dezembro tudo em riba! Corram!

201 maneiras de enlouquecer um homem na cama – Tina Robbins
Não é 199 nem 200, uma pechincha.

Ele simplesmente não está a fim de você – Greg Behrendt
E, claro, você precisa de um livro para saber.

Casamento blindado – Seu casamento à prova de divórcio – Cristiane e Renato Cardoso
Nem o tinhoso separa...

Você não está sozinho – Max Lucado
O título é criativo, mas não resolve a vida. Você nasceu só e assim morrerá, amigo.


Angelina Miranda é jornalista e escritora sem livros.
Ri alto, é fã de jabuticaba, cachorro, botecos e maus modos.
Dá uns pitacos pelo Feici e faz uns versos no Poesias Angelinas.