Livros

Paulistano, nascido em 1966, Mirisola já publicou diversos títulos 
entre contos, crônicas e romances. 
Nunca li Marcelo Mirisola. Não sabia que ele era. Nem que era bom.

Aí um filho de deus me fala do “O azul do filho morto”. Um romance esquisito, irônico e cheio de verdades gosmentas e indigestas.

De início, é brilhante a “falta de dedos” e o olhar de dentro do narrador que expõe sem meias palavras os hábitos e pensamentos de uma típica família de classe média brasileira, de 1970 e 1980. O Brasil é de ditadura, é verdade, mas é um país feliz. Pelo menos para uma fatia da sociedade que desfruta da “dádiva seletiva”, o conhecido e reverenciado “Milagre econômico”.

Pois bem, a felicidade é uma churrasqueira recheada, as crianças no carro no passeio de fim de semana e um domingo no clube, claro, com seus ridículos e banalidades:

“Dá nojo. Mas todo cemitério é o mesmo clube. A sociedade Esportiva Palmeiras, o Clube Regatas Tietê. Ou o Getsêmani, tanto faz. Qualquer lugar desses cobra mensalidade e exige atestado de óbito pra entrar. Os bustos de bronze usam costeletas. É o seguinte. O cara faz uma proposta de admissão. Aí ele diz que é gerente de marketing casado com fulana profissional de RH. Tem dois filhos lindos e maravilhosos matriculados no Santo Américo, e pronto. Tá aceito. Um morto associado com carteirinha e tudo.”

Com doses de humor, limão e desdém, ele revela o podre de cada um, o chorume da família.
A mãe histérica que nomeia o filho de “isso” ou “isso aí”, o avô “racista, generoso e sentimental” que trabalha no mercadão e usa balanças adulteradas e a velha rica e rasa, a avó:

“Uma vez vovó que sofria – do cocuruto – de maldade, peruagem e de esquecimentos atrozes, acusou uma “negrinha desgraçada” de roubar suas joias. Eu me lembro deste episódio para lembrar da minha mãe e dos ovos que, de três em três horas, eu, débil mental (“isso”), garoto estranho que vivia olhando pra baixo, fui obrigado a engolir. Eu quero dizer o seguinte: se eu não comesse os malditos ovos as cabeças explodiriam contra as paredes. Ou melhor, a autoridade da minha mãe começava na minha avó e terminava na parede.”

No decorrer do livro, é possível adentrar o universo daquele poema do heterônimo de Fernando Pessoa, Álvaro de Campos, Poema em linha reta. O sujeito nunca encontra um perdedor, alguém que tivesse sofrido fracassos, ninguém pobre, desanimado, triste ou ridículo. Um exército de polidos vencedores.

Em o “Azul do filho morto”, Mirisola rasteja-se erguido, aos risos, facadas e deboches daquilo que boa parte de nós, vivos ou não, veneramos como maravilhas, ou simplesmente engolimos como tais.


Por gosto e tesão da avó “Um garoto triste cavalgava faxineiras”. Primeiro capítulo. 



Quanto cabe numa palavra?


Nascido em Paris, Sponville tem grande influência  
de nomes como Sartre e Dostoievski.
Nos sonhos e pesadelos, no café da manhã, trabalho e jantar, até quando a língua cansa, estamos dizendo alguma coisa. Gastamos de 10 a 11 horas por dia nos comunicando verbalmente, seja falando, lendo ou escrevendo (em tempos de Facebook, esse número pode ser maior). Mas mesmo com tanta ‘prática’, nem sempre fazemos o melhor uso da língua, digo tanto no sentido de utilizar uma palavra empregando outro significado, como também, por mergulharmos tão pouco no oceano de possibilidades que pode conter a palavra.

‘Adulto’, por exemplo, na maioria das vezes, é utilizado apenas para distinguir os pequenos dos grandes, uma ponte que divide o aparente abismo que há entre o que é ser criança e adulto, mas parece que o rio não é tão raso assim.

“Adulto: Aquele cujo corpo deixou de crescer – que já não pode crescer, a não ser por meio da alma. É ser fiel à infância, recusando-se a encerrar-se nela. Porque todas as crianças querem crescer. O infantilismo é uma doença de velhos”.

André Comte-Sponville no seu “Dicionário Filosófico”, vai muito além das definições frias e objetivas a que estamos acostumados a ler nos Aurélios por aí. De maneira meticulosa, ele pensa a língua, investiga a palavra, revelando origem e essência, tantas vezes esquecidas nas curvas do tempo...

Letras adiante, ele nos diz sobre a ansiedade; com a espetacularização da violência e o medo injetado nas grandes cidades, e até nas pequenas, ela tem funcionado como um regulador social, que restringe as possibilidades de estar efetivamente na vida e vivê-la. Se enfurne, ponha mais trancas, tome o café em casa, a violência está na rua, a morte na calçada.
“O ansioso sempre está um medo à frente: ele verifica três vezes se fechou a porta, teme ser seguido ou agredido, teme sempre – tanto para si como para seus próximos – a doença, os acidentes, o infortúnio. Toma, contra o seu medo, um arsenal de precauções, que só fazem aumentar o medo. Tem medo de sentir medo e se apavora com isso”.

Ainda que a solidão seja uma condição comum a todos nós, há a tendência de confundi-la com o isolamento, e reduzi-la a um sentido meramente soturno e negativo. Ai daquele que opta por ficar em casa numa sexta-feira à noite, logo é digno de pena, está só, não tem ninguém.
“A solidão é nossa condição ordinária: não por termos relações com os outros, mas porque essas relações não poderiam abolir nossa solidão essencial, que decorre do fato de sermos os únicos a ser o que somos e a viver o que vivemos. “Na medida em que somos sós, o amor e a morte se aproximam”, escreve Rilke. Não é que não haja amor, ou que sejamos os únicos a morrer; mas é que ninguém pode morrer ou amar em nosso lugar. Assim, o isolamento é a exceção; a solidão, a regra. É o preço a pagar por ser si mesmo.”

Um dia uma menina de uns cinco anos me perguntou: O que é ser Mulher? Pensei, pensei mas de nada adiantou, às vezes, o que parece ser o mais simples e óbvio é o mais difícil de explicar.
“Dirão que o que importa é a humanidade, não o sexo. Pode ser. Mas tampouco é anedótico o fato de a humanidade ser sexuada. A diferença sexual é, sem dúvida, uma das mais fortes, das mais constantes, das mais estruturantes que há. No entanto, a diferença entre os dois sexos permanece vaga e deve tanto ou mais à cultura, ao que tudo indica, do que à natureza. “Não nascemos mulher”, dizia Simone de Beauvoir, “tornamo-nos mulher.”

Sobre as diversas formas de acontecer mulher, ele conclui: “Uma pessoa nasce mulher ou homem, depois se torna o que é, de maneira mais ou menos feminina ou masculina, mas pouco importa esse devir, ainda que deva tudo à cultura, é um dos mais bonitos presentes que a humanidade deu a si mesma.”.




Por que nos incomoda tanto quem fala “pobrema”?


Marcos Bagno é doutor pela USP e
 tem mais de trinta títulos lançados.
(Foto: Rascunho - Gazeta do Povo)
Marcos Bagno no livro “Preconceito Linguístico – O que é, como se faz”, nos traz uma reflexão sobre como enxergamos a nossa língua e como nos relacionamos com ela. Sobretudo, nos dá uma dimensão da importância de uma educação linguística voltada à inclusão social e a valorização da diversidade cultural entranhada em tantos portugueses falados pelo Brasil afora.

Logo de início, na introdução do livro, ele nos adverte:

“Temos de fazer uma grande esforço para não incorrer no erro milenar dos gramáticos tradicionalistas de estudar a língua como uma coisa morta, sem levar em consideração as pessoas vivas que a falam.”
Assim que li isso me lembrei de uma amiga que mora em Parelheiros, bairro do extremo sul de São Paulo, que me disse uma coisa que também vejo onde vivo, no Capão Redondo (extremo sul também), “Onde moro nunca ouvi uma pessoa falar: “os policiais”, só “os polícia””.   

Eu também nunca vi, e acredito que não seja mera coincidência. Grosso modo, é uma adaptação “malandra” da língua de um povo, de determinada região, que, por motivos muitos, não vê os homens da segurança pública com todo esse garbo e elegância, como sendo merecedores do plural: “Vejam lá, colegas e vizinhos, Os Policiais estão chegando”. É mais comum, “Os polícia tão chegano, mano”, quando dá tempo de dizer isso tudo...

Estamos falando de regiões urbanas, mas nas cidades do interior dos estados, o mesmo fenômeno acontece, com número igual ou maior de variações linguísticas.
Vale lembrar que este modo de falar não se restringe apenas às classes mais baixas. Não foram poucas as vezes que vi pessoas com poder aquisitivo e ensino superior dizerem: “Nóis vamo de qualquer jeito”.
Dessa reflexão, pergunto: O que aprendemos primeiro, a falar ou a escrever?
Para o autor, diferente da história do ovo e da galinha, esse dilema é mais fácil de resolver: “Todo esse processo histórico de inversão dos fatos pode criar a ilusão de que primeiro alguém escreveu uma gramática e só depois é que as pessoas passaram a falar a língua”.

Por defender a legitimidade das variações linguísticas, foi criticado, muitas dessas críticas se fundamentavam no argumento: “Se todo mundo fala como quer, então vamos escrever de qualquer jeito. Pra quê gramática?”.
Sobre isso, Bagno aproveita o gancho e explica a importância da divisão clara dos papéis da língua falada e escrita na sociedade e no cotidiano.
“É claro que é preciso ensinar a escrever de acordo com a ortográfica oficial, mas não se pode fazer isso tentando criar uma língua falada “artificial” e reprovando como “erradas” as pronúncias que são resultado da história social e cultural das pessoas que falam a língua em cada canto do Brasil”.
Em suma, só posso chegar à conclusão que falar pobrema não é um problema se você compreende o significado. Como diz e reitera o  linguista, “É infinitamente mais útil e relevante aprender a usar a língua e não aprender sobre a língua”.
Se quiser se aprofundar no assunto, neste link você pode baixar o livro em PDF.

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