quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Nunca recuse uma saída ao bar

Bar e bebida cansa. Letícia Sabatella repousando no asfalto. 
Quem nunca?
A casa de vó é velha, velha, seguindo fielmente os passos da dona. 

Na sala, há anos, acontece uma conferência de fungos e traças, todos à espreita, pelos cantos. Qualquer humano é intruso.

Sempre durmo no sofá. O quarto me põe distante e receio que algo, alguma coisa qualquer, possa acontecer e eu ainda dormindo, fique sem saber.

Visto minha camisa velha e deito. Logo, logo, chegam os pensamentos que surgem antes de cairmos nas profundezas do sono. Sapatos com colheres, porcos e tomadas flutuando num céu de árvores... 

- Telefone pra você! – Diz baixinho a avó com sono.

É Débora. Uma daquelas pessoas de alto astral, todo dia é dia de festa, corre de casa como o diabo da cruz.

Vamos ao bar de sempre, pouco reboco e bebidas baratas.

Por lá vimos os conhecidos e os que se tornaram.

Marcelo chega se lamentando que não pode beber, perdeu o dedo mindinho na metalúrgica. E os anti-inflamatórios, você sabe, perdem o efeito.

Solange emendou o assunto, não sei como, e disse que o namorado havia sumido novamente. Ela sabe onde encontrá-lo, mas que graça a vida teria?

Sérgio passa rápido, toca sua gaita e sai à procura de Dona Benta, como muitos durante toda a noite.

Bebemos o que tínhamos e depois com os copos dos outros. Os cigarros, da mesma forma.

Sâmia, depois de falar demais, vomitou. Era o fim da noite, fomos embora.

Chegando em casa, sou abraçada por uma nuvem de pó que paira na sala. Em pranto silencioso, vovó, sentada no chão, me aponta o sofá.

A casa entrara em fase terminal. Um pedaço do teto caiu em cima do braço direito do sofá. Em cima da minha cabeça que não estava lá. Não havia mais braço de sofá. O meu sofá, onde eu dormiria pra sempre.

E vovó chorando, chorando, minha quase morte. 

(Baseado em fatos vividos, meus caros...)


Angelina Miranda é jornalista e escritora sem livros.
Ri alto, ama a natureza, é fã de fotografias, cachorros e botequins.
Dá uns pitacos pelo Feici e faz uns versos no Poesias Angelinas.

terça-feira, 10 de junho de 2014

Ficar ou fugir?

Eles vivem presos há anos. De modo que quando perceberam o cadeado aberto, sentiram que enfim seriam afagados pelo sopro da liberdade.

John e Lili desceram a rua a todo o vapor, sem olhar para trás. Com uma espécie de sorriso maravilhado, trotavam como cavalos de corrida.

Já Ritinha saiu dizendo: “Venha, oh, liberdade, eu não tenho medo”, mas logo aniquilou-se. Todos aqueles carros, pessoas, bocas, barulhos, vida acontecendo, lhe lançou um medo paralisador. Ficou, vejam só vocês, na rua encolhida como um recém-nascido.

Desfrutado os medos e diversões – os dois primeiros foram pegos na padaria, prestes a comer um frango assado. Já Ritinha foi resgatada há poucos metros de casa, ainda encolhida.


Até mesmo os cães, cada um tem o seu modo particular de lidar com as situações que a vida coloca... 


Angelina Miranda é jornalista e escritora sem livros.
Ri alto, é fã de fotografia, cachorro, botequins e maus modos.
Dá uns pitacos pelo Feici e faz uns versos no Poesias Angelinas.

terça-feira, 13 de maio de 2014

A maldição de ser filha de faxineira



Ser filha de faxineira é foda. É um inferno. Tudo está imundo. Sempre vai estar. Há uma película permanente e embaçada grudada nos olhos. Nada nunca está limpo o bastante. A cozinha, a sala, os quartos, o banheiro então, “criando bicho”. Tudo sujo! 

Dormir? O suficiente. Que varia entre cinco e seis horas de sono. Mais do que isso, somente, se por acaso, tenha enchido uma laje, carregado tijolos ou coisas do tipo. Em Pernambuco era assim, e por todo canto essa cultura tem de ecoar. 

Já acordei do modo tradicional, aos berros, e de modos inusitados. Panelaços, com cães lambendo a cara, e até com água. Gente de bem, honesta e trabalhadora levanta cedo. Custo aprender. 

Óh, quando desgrudo os olhos e são 9h da manhã, de antemão, começo a ter pena de mim. No lugar do bom dia recebo um “boa tarde”. Já é muito tarde, muito tarde, vai perder o dia. O dia tem que render, render. Render pra quê? Por quê? 

Dia desses sofri represálias. Foi um desses dias que extrapolei na cama. Tive que lavar o portão com uma bucha de pia. Sabe como é, limpa melhor. 

As escovas de dente lá em casa nunca foram jogadas fora. Como você, pensava que elas não tinham mais serventia, mas tem. Com uma escova de dente verde e uma barra de sabão fico horas a fio esfregando os rejuntes do banheiro. Metros de rejunte, um a um. Há os que esfregam o todo com uma vassoura, mas isso é serviço de “imunda” e “preguiçosa”, diz ela. 

Pois, então, que venham os sábados azulejados!

Mas eu também fico na cozinha, e é daí que vem uma das maiores tristezas de mamãe: eu não aprecio ariar louças. Nada a entristece mais do que o meu desmazelo, aquelas panelas foscas e sem vida...

Tudo isso, confesso, é porque não honro meu sobrenome. Explico. O nome de mamãe é Marlene e o sobrenome, como ela mesmo enfatiza - e se orgulha - é Trabalho. Eu, como filha, herdei o maldito sobrenome, mas não o coloco em prática. Prefiro, está mais ao meu gosto, ser “imunda” e “preguiçosa”. 

Bom, por ser do trabalho desde muito nova, mamãe não fez faculdade. Fez os filhos, e tinha de sustentá-los. 

Não teve pais bem sucedidos, nem conhecidos, eram maltrapilhos e fizeram o favor de morrer cedo. Partiram de câncer, em época que tratamento era luxo de poucos. O médico apenas mandava o paciente “esperar” em casa, e tenha uma boa passagem. Então, para que eu não caísse nas garras da inanição, foi limpar a sujeira dos outros. 

Era pobre, sem eira nem beira, mas sua maior virtude era ser limpa! É ser limpa! E quando as patroas falavam, então, Ave Maria. Os olhos brilhavam!  

Quanto mais limpa, mais elogio. Tome de presente essas panelas usadas. Mais limpeza. Leve essas roupas, não uso mais. Mais limpeza. Pegue os brinquedos velhos para sua filha. Mais limpeza. Mesmo salário. Mais limpeza.

Com as santas patroas, aprendeu a lição, ou melhor dizendo, a reza. Beija os pés do Trabalho, o seu Deus. Por ele ajoelha e baixa os olhos, o seu Deus, onipotente e absoluto. 

Sequer vai aos parques nos fins de semana, comer uma coisinha fora. É preciso louvar, esfregar, trabalhar! 

Mas eu não louvo o seu Deus. Eu quero matá-lo. E com tristeza ouso dizer mamãe: a vida lhe fez mal, muito mal. 



Angelina Miranda é jornalista e escritora sem livros.
Ri alto, é fã de fotografia, cachorro, botequins e maus modos.
Dá uns pitacos pelo Feici e faz uns versos no Poesias Angelinas.


quarta-feira, 23 de abril de 2014

Carta de um suicida que ficou

Não desperto do sono, sou arrancado pelos pensamentos. Mal abro os olhos, e quedo para trás, sinto o bombardeio de ideias furando a minha cabeça, que mais parece uma engrenagem que nunca desliga.

Logo nos primeiros passos do dia, arquiteto o futuro. Mentalizo e idealizo os cenários e personagens pelos quais passarei. Construo o inconstruível. Penso ter o controle do que nunca será controlável: o amanhã.

Para as possíveis divergências e brigas que terei, imagino o desfecho – o que irei dizer e rebater. Vivo me preparando para o nada. Antecipo tudo para poder chegar pronto, mal sabendo que nunca estarei pronto.

Pois, sem sobreaviso, a vida nos coloca – quando não empurra – nos beirais dos edifícios, nas pontes e viadutos, lá, na hora, (muitas vezes sem recurso) decidimos o que fazer.

Estou a postos todos os dias para observar, analisar e enquadrar o que acontece ao redor, de fora e de dentro.

Penso ter atirado, mas sou eu quem levou o tiro. Vivo aflito pelo que fiz de mal aos outros, gestos que fiz, coisas que falei, quando na verdade, não há mal algum. Somente a nossa costumeira estranheza humana. 

Vivo dentro da minha cabeça, muito aquém da realidade. 

Cheguei a um estado brutal de esgotamento, meu cérebro, com todas as suas chaves e armadilhas, está definhando comigo. Quando demos a ela o poder, é fervorosa a Autodestruição.

As lágrimas, autônomas, vão e vão, sem olhar para trás. 

A angústia está com fome, estou só os ossos.

Preciso mudar algumas coisa de lugar. Tomar as rédeas.

Envergo mas não quebro.

Não quero quebrar. 



Angelina Miranda é jornalista e escritora sem livros.
Ri alto, é fã de fotografia, cachorro, botecos e maus modos.
Dá uns pitacos pelo Feici e faz uns versos no Poesias Angelinas

terça-feira, 22 de abril de 2014

Porque o Pondé é o nosso Datena intelectual


Pondé, o novo seguidor do Datena.

A bem da verdade, muitos dizem que é pseudo intelectual. Mas não vamos nos atentar a esses pormenores.

Desde que Luiz Felipe Pondé deixou de ser um insólito professor da PUC-SP, para se tornar um filósofo midiático, não paramos de ouvir e ler glórias e maldições em seu nome.

Sua coluna na Folha tem destaque, seja por apreço ou ódio dos leitores. Toda segunda-feira é certa a sua presença nas rodas de conversa nas faculdades, nas redes sociais – pela defesa da direita e seus dogmas (sem tortura, que fiquei claro).

Tornou-se o pai afável e carinhoso que põe no colo os pobres órfãos dum Brasil sem ideais libertários, dos meninos de direita do Mackenzie que são mortos e espancados toda semana por pensarem diferente.

Há tempos o que me intriga, mais do que as conclusões simplistas do pernambucano, é o porquê de tanto ibope? Que contribuição os Pondés da vida tem a nos dar?

Não se assombre, quem nos dá a resposta é ele mesmo.

Percebam, quando um filósofo, cheio de dedos, formado em Tel Aviv, resolve escrever o texto "Ser jovem e liberal é péssimo pra pegar mulher", enxergamos a olho nu que o interesse em debater algo válido, ou minimamente de interesse público, cai por terra.

O importante é fazer rir.

Alguma fábrica de fogos deveria contratá-lo como garoto propaganda, “Quanto mais barulho melhor”.

Parece que Pondé é o mais novo seguidor do Datena. Tornou-se a criança chorosa, que ignorada, faz de tudo para chamar atenção. Causar. E nós, como pais mimadores, batemos palmas a tudo. A diferença, meus caros, é que ele ganha para isso.

No fim do mês, não importa quem leu mais os textos, se foram os prós ou contras, o que importa é o número de pageviews que você ajuda a contribuir quando compartilha a coluna do “porco”, “imundo” e “fascista”.

Como tem sido difícil ouvir a canção que diz: “O importante é que interessa...".

Mas não estou aqui a atacar pedras em ninguém. É válido ler, entender, até mesmo para saber com quem estamos conversando, com quem estamos lidando. Como é que pensa uma parcela do Brasil. Mas não confundam as coisas. Não cobrem inteligência, propósitos e sensibilidade a quem nunca se propôs a isso.

E não duvidem, daqui uns anos – quando a ditadura comunista assolar esse país – leremos na ilustre coluna que a volta da escravidão é imprescindível para o bem estar social e o progresso do país.

Enquanto nós nos mordemos de raiva, tendo ataques de pelanca no Facebook, Pondé está pensando em sua próxima coluna: "Oras, talvez o Bolsonaro nem seja tão antipático assim..."



Angelina Miranda é jornalista e escritora sem livros.
Ri alto, é fã de fotografia, cachorro, botecos e maus modos.
Dá uns pitacos pelo Feici e faz uns versos no Poesias Angelinas