Crônicas

Urubu do amor...
Andei pelas ruas achincalhando seu nome.

Contei seus segredos, como quem conversa na feira. Beijei bocas fétidas de palavras podres. Mas seus beiços-cigarro-café, jamais.

Contei a todos os seus defeitos. Sem efeitos, inventava mais alguns.

Joguei em suas costas o peso das pedras e urubus que o vento colocava em meu caminho. O mesmo vento que soprava a nosso favor.

Maldisse seus gostos e costumes. Seu jeito roceiro de viver na cidade, a simplicidade do vestir e falar. Amaldiçoei as cervejas divididas, os risos, as contas que não paguei, as histórias repetidas.

Os malditos garçons da praça Roosevelt sabiam de nós. Sabiam e nada disseram. Não me contaram do cliente de longa data. Dos olhos lascivos, das bundas passantes e penetradas.

Seus tiques de retardado. Insensibilidade, a falta de flor. Um homem que chora. Mas sem sangue e coração. O gozo crescido, o suspiro de menino.

Em comum acordo, jurei a deus e ao diabo, não mais te ver, nem deixar entrar seja por qual porta fosse.

De armadura e trabuco, cheguei. Espremi a campainha que nunca funcionou. Nada de mais, meus livros que esqueci. Já li, mas foram caros.

Sorriso sem dente. Olá e tudo bem, como manda o figurino.

Calor. Geladeira cheia. Educação. Cerveja de intenções. Sofá pequeno. Umas palavras soltas, um olhar preciso.

Um dia.

Dois dias.

Três dias.

Domingo. Pernas xadrez bordam o lençol. Conchas de gente dentro. Abraço e leite com canela.

Não se vive o que se fala. Floresce o que se sente.



Angelina Miranda é jornalista e escritora sem livros.
Ri alto, é fã de jabuticaba, cachorro, botecos e maus modos.
Dá uns pitacos pelo Feici e faz uns versos no Poesias Angelinas.

Por que o povo é burro?


De 1933, a obra operários, de Tarsila do Amaral,
revela o enlace da artista com o comunismo. 
O despertador toca. Não acredito, mas é verdade, já amanheceu. 

Minha mão rasteja pela parede e acende a luz. Me enfio em qualquer roupa, sem abrir os olhos, e enfio a bolsa no braço. Faço a marmita com o que tem e engulo o café de ontem. 

No ponto, as pessoas chegam rápidas, os ônibus não. Unidos, nos socamos para que todos possam caber. Aqui o clima é quente. Suamos e brigamos para ter onde pôr os pés e as mãos. Todo dia, religiosamente, rezamos pela descida ligeira de alguém que só se rende no ponto final.

Repreendemos com olhos vermelhos e sonolentos os que se exaltam. Imploramos pelo silêncio, pois é o mais próximo que podemos chegar da paz. Na contramão, desejamos o cair um dos outros, a troco de um banco para repousar durante as horas seguintes. 

A mediocridade nos é farta e generosa.

O ônibus ronca, como quem raspa a garganta, e me cospe. Mecanicamente, meus pés seguem o caminho, assim como meu corpo que irá reproduzir inúmeros movimentos programados ao longo das próximas oito horas, às vezes dez. 

Contaram-me do sol, não sei do dia, quando saio já é noite.
No ponto, me pergunto de onde vem tanta gente, de onde brotam tantos pés arrastados. Rezo inutilmente por um assento que não vai me esperar. Do ódio matutino à passividade noturna. Empurrões, xingamentos e sons indecifráveis. Esperam que eu reaja, e apenas quero à minha casa chegar.

De sapatos, desabo como um prédio implodido. Passo os canais, ouço alguém dizer sobre políticas de alguma pública, educação, literatura... Aperto o botão de novo, a novela já vai começar.




Angelina Miranda é jornalista e escritora sem livros.
Ri alto, é fã de jabuticaba, cachorro, botecos e maus modos.
Dá uns pitacos pelo Feici e faz uns versos no Poesias Angelinas.



Não jogue guarda-chuva fora



(Créditos da imagem)
Por causa da TPM e da falta de palavra da cobradora que disse ter “esquecido” de me avisar sobre quando chegássemos à igreja Santo Eduardo, desci do ônibus vermelha, cuspindo marimbondos e palavrões. 

Sentei-me no banco do ponto para esperar o próximo ônibus, ao meu lado um velho me observa, talvez se perguntando o porquê de minha gentileza. O ignoro, ele e seu meio cabo de vassoura que faz às vezes de uma bengala. 

Virei o rosto e dei a deixa.

- Você gosta de ler?

- Gosto. – Respondi à uma senhora de cabelo caramelo cinzento, óculos velhos e saia florida.

- Então, minha filha, nesse folheto deus dará as respostas para todas as suas perguntas. Como conquistar a felicidade, o matrimônio próspero e, o mais importante, como alcançar o reino dos céus.

Era simpática a senhorinha, falava com entusiasmo, até me pareceu bom o deus do folheto, mas não queria felicidade, casamento, nem reino, queria o ônibus.

- Que bom que nesse folheto tem tudo isso aí que a senhora disse, mas sei que não vou ler, por isso não vou pegar.

- Ooooh, que pena! Mas é sincera, pelo menos não vai pegar pra jogar no lixo. A gente fica tão triste quando isso acontece, evangelizamos porque acreditamos nisso. – Disse triste e feliz.

Isso com certeza, pensei. Ninguém sai de casa abordando estranhos na rua com folhetos milagrosos, sem ter plena e absoluta fé em suas convicções. Sorri com dentes amarelos, e o velho de meia vassoura sentiu-se à vontade para dar seu testemunho meteorológico.

-  Que calor, não?!

Respondi qualquer coisa e ele descarrilhou.

- Mesmo com quentura, eu gosto de morar aqui. Embu das Artes é um lugar tranquilo, como você pode ver, mas tem muita gente ruim...

- É... Mas deve ter gente boa também, o senhor não me parece ruim.

- Eu sou um homem sossegado, moro naquela ruazinha ali de cima, tá vendo? Ali, ó, depois da padaria, lá eu moro e trabalho, conserto guarda-chuvas.

- Então é o senhor do tempo?

- Pode ser, mas hoje em dia quase ninguém mais conserta guarda-chuva. -Disse desanimado.

- É verdade. Eu mesmo não mando consertar. – Palpitou a tia do folheto, arrastando os passos e indo embora.

 - Tá vendo? Hoje a maioria das pessoas é assim, ninguém quer arrumar nada, joga fora e compra outro, igual o alfaiate, ele também quase não deve ter trabalho...

- O sapateiro...

- Antigamente era diferente, tudo era diferente... Sou mineiro, saí de minha cidade muito novo com 14 anos. Sabe quando eu cheguei em São Paulo? Há muito tempo, sua mãe nem devia ter nascido, foi em 1951...

De volta a 2013, da catraca eu ouvi:

- Vai minha filha, boa sorte! Vem me visitar, não jogue guarda-chuva fora. 



Angelina Miranda é jornalista e escritora sem livros.
Ri alto, é fã de jabuticaba, cachorro, botecos e maus modos.
Dá uns pitacos pelo Feici e faz uns versos no Poesias Angelinas.


Casa de patroa




Foto: Almeida Rocha/Folha
Mamãe não tem meio termo. Lasca-me um tapa na fuça, e logo me põe no colo beijando minha testa, desculpando-se com voz mais infantil que a minha. 

Até seu café não tem meio termo. Côa uma tinta capaz de pintar asfalto, e um desenxabido mijo de padre. Eu misturo, se ficar forte demais ou fraco de menos, talvez tenha a manhã seguinte para tentar de novo. 

O café vem com meu mexido preferido: ovo frito, com banana e farinha de mandioca; como de olhos fechados, só abro a boca. E vamos nós pra casa da patroa.


Quando estou aqui transpiro alecrim. Móveis novos e bonitos, paredes limpas e espaço para respirar. Os cachorros são mais limpos que os nossos, é verdade, mas não sabem abanar o rabo. Não gosto deles. 


Vou ao banheiro e até me esqueço de que o xixi parou de cair. Em cada quadrado branco, uma flor, em cada flor uma cor; azul, amarela e laranja, depois repete e começa de novo, azul, amarela e laranja, azul, amarela e laranja... Pensei em perguntar para mamãe quem tinha pisado nas flores do nosso banheiro, mas desisti, ela não gosta de perguntas, principalmente das minhas.


Mas eu gosto mesmo é da janela da sala. Subo no sofá, desatarraxo o trinco e repouso no parapeito. Olho a cidade pequenininha, as pessoas se esbarrando lá embaixo, e o som dos carros e a gritaria das bocas rastejando tentando alcançar meus ouvidos, e eu levinha, levinha. Seria legal ter uma janela dessa, em que a gente se sente grande...


Hoje o dia passou rápido. Desço de mãos dadas com mamãe pela caixa-bonita-com-espelho que em segundos nos coloca de novo no chão.


Caminhando para o ponto de ônibus, vejo zumbis com roupas velhas, cabelos espetados e olhos apagados, gente bem parecida comigo e com a minha mãe. A gente existe mal.

Mas eu estou bem, mesmo voltando para as goteiras, o mofo e para meu colchão magro estou com o livro do Pedrinho loirinho, acho que ele não vai ligar...



Angelina Miranda é jornalista e escritora sem livros.
Ri alto, é fã de jabuticaba, cachorro, botecos e maus modos.
Dá uns pitacos pelo Feici e faz uns versos no Poesias Angelinas.


Pé de carcaça 



(Foto: QP)
Antes de me deitar deixo a janela aberta. Minha cabeceira fica encostada na parede da janela, adormeço observando os móveis iluminados pela lua. Pela manhã, o dia invade o quarto e me põe de pé.
Debaixo de um azul celestial, os meninos da favela gritam e chutam aos quatro ventos no campinho de barro, crianças chorosas e cachorros latindo disputam ouvidos, enquanto a vizinha varre quase sem poder com sua vassoura velha.

Descalça vou ao banheiro, lavo as mãos e olho para o espelho. Meus cabelos estão em arruaça e de minha cara amassada, ainda pingam uns restos de sonho que não vivi.

Ponho a água no fogo. A cada barulho meu, os cachorros latem e choram. Abro a porta e eles se alegram. Eu também me alegro. Cachorro é amor de criança, amor de graça. Adoço o café e me junto a eles no quintal.
O pé de flores vermelhas, que não sei o nome, continua crescendo nesse eterno flores caem, flores nascem. Atrás de meu banco de madeira, as formigas fazem bom proveito do pé de jabuticaba. É triste. Depois de comerem a poupa, deixam a casca seca cheia de pequenos buracos. Tenho um pé de carcaça.

A filha da minha vizinha está crescendo. Já consegue jogar seus pertences no meu quintal. Minha cachorra agradece, abanando o rabo com a boneca careca entre os dentes. Sem secar os olhos, a menina chora, chora, parece que a vida já lhe contou que algumas coisas são assim mesmo, vão e não voltam...

Na cozinha, encho a caneca novamente. De volta ao quintal, a cachorra cansou da boneca, a menina desistiu de sofrer e as formigas foram embora.

Tanta coisa acontece enquanto dura um café...


Angelina Miranda é jornalista e escritora sem livros.
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O dia em que conheci o guardião da CPTM


(Foto: Ricardo Guimarães - Diário da CPTM)

Era por volta de 23h. Estava aproveitando os últimos goles de cerveja à espera do trem, que, como de costume, tardou a chegar. De repente, surgiu um homenzinho de baixa estatura, levemente pançudo com cara de poucos amigos.

– A senhora não pode beber dentro da estação.

– Ah, o senhor me desculpe, eu não sabia. Estou terminando e já jogo a lata fora.

Ele cruzou os braços diante de mim e ergueu o queixo, como que chamando para um duelo. Adiante, vi seus colegas na ponta da plataforma. Olhavam o rio entediados, meio sonolentos, aguardando o fim do expediente, mas não o homenzinho, esse queria mostrar serviço.

– A senhora vai jogar a lata fora agora! – disse aumentando o tom

O homenzinho cresceu dentro de sua farda azul e pintou as bochechas de vermelho.

– Não vou jogar fora, comprei e vou beber. – respondi.

Ele se aproximou e tentou levar a lata na mão grande, dei um olé no ar e ele apertou o vazio.

– Olha, eu não deveria ter entrado com a lata, mas já que entrei, me diga, a quem eu prejudico terminando de tomar esses dois goles de cerveja quente?

– Não pode! Joga a lata no lixo agora! – Disse indignado.

Mesmo falando alto e quase mostrando os dentes, seus colegas não nos deram nenhuma atenção, em meio aos bocejos, não desgrudaram os olhos do rio.

– No regulamento da CPTM está escrito que é proibido consumir bebida alcoólica nas estações!

– O senhor vai me desculpar, mas apenas passo a catraca e entro no vagão, não leio nenhum manual do trem.


– Ou joga a lata fora, ou...


Finalmente o trem chegou, pensei. Larguei o homenzinho e suas ameaças. Sentei-me num dos bancos, e antes de sorver o último gole ergui a lata e fiz um brinde em sua homenagem.

– Adeus guardião da CPTM! 
 



Angelina Miranda é jornalista e escritora sem livros.
Ri alto, é fã de jabuticaba, cachorro, botecos e maus modos.
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